Por Natan Costa Rodrigues
Sumário: 1. Apresentação e conceituação dos termos; 2. Que relação se pode estabelecer entre uma coisa e outra? 3. Dialética na relação entre Natureza e Revelação; 4. Como se relaciona a revelação com o conteúdo da pregação e com a vida do pregador? 5. Conclusão
1.
Apresentação
e conceituação dos termos
A questão que nos propomos a enfrentar nestas breves linhas é tormentosa. Cuida-se de entender, dentro do possível, a relação que se estabelece entre o mundo criado por Deus e a sua palavra revelada. Para isto, devemos proceder à conceituação dos termos e a elucidação da relação entre as realidades que lhe são referidas. Em seguida, tentaremos expor algumas consequências que surgem do que foi proposto, focalizando, especialmente, a revelação na pregação e na vida do pregador.
Seguindo o roteiro, no que
tange a natureza, a entendemos como tudo aquilo que se opõe a Deus, ou
dito de uma forma melhor, ela é constituída de tudo aquilo que Deus criou:
sejam coisas formadas a partir da matéria, sejam seres espirituais, ou seres
formados da conjugação dessas duas coisas, ou ainda seres de constituição que
desconhecemos, formados de elementos que não temos sequer ideia, mas que Deus
criou. Tudo isto é natureza. Portanto, a vemos em uma acepção ampla, e não
somente como aquilo que, costumeiramente, se chama mundo material.
Por revelação, entendemos tratar-se,
em plenitude, do Verbo de Deus, a palavra falada por Deus, inspirada por Ele, e
que finalmente tomou a forma da carne humana. A palavra de Deus destina-se a
revelar ao homem, em primeiro lugar, a sua salvação e redenção e, em um aspecto
secundário, ela consiste no conhecimento que tem em vista a instrução e o aperfeiçoamento
do ser humano para essa mesma salvação.
Ademais, de uma forma
colateral, ela acaba revelando aspectos da natureza que Deus criou: aspectos importantes
para a salvação, mas valiosos para outras coisas. Outrossim, essa revelação nos
é dada, em sua forma textual, no corpo da Bíblia Sagrada. Então temos aqui bem
fixados os conceitos em pauta.
2. Que
relação se pode estabelecer entre uma coisa e outra?
A primeira relação óbvia é
que o Verbo de Deus deu origem à natureza, visto que sem Ele, nada do que foi
feito se fez. Então, de um ponto de vista ontológico ou de precedência, é a revelação
que cria a ordem natural e a informa; essa mesma revelação é a inteligência que
arquitetou a natureza e a dotou de uma racionalidade implícita.
Todavia, em um sentido, não
de precedência, mas temporal e espacial, dentro, portanto, de uma cronologia da
salvação, a relação entre elas se inverte. Primeiro, surge o homem pecador em
um mundo caído e corrompido pelo seu pecado, e depois nos surge a revelação de
Deus, isto é, o verbo divino.
A revelação surge no contexto
de um tempo e um espaço, esclarecendo ao homem, no que consiste o mundo em que
ele vive, e qual é a sua exata medida e situação nele. E, por fim, lhe revela o
que ele deve fazer e o que deve acontecer para que ele seja salvo.
Desse modo, se pode elencar
estas duas formas de relação entre a natureza e a revelação:
a)
uma de natureza ontológica (a
palavra cria o mundo) e;
b)
outra de natureza cronotópica
(a palavra surge no tempo e no espaço);
Há algumas derivações
importantes tanto de uma, quanto de outra coisa.
Por exemplo, no sentido
cronotópico, em que primeiro há o homem no mundo e, depois Deus se revela a ele
em dada circunstância espaço-temporal, pode-se afirmar que essa revelação pressupõe
esse mundo e a higidez da Criação. É que ela sucede em um tempo e em um espaço
bem definido no mundo criado por Deus. A palavra divina é sempre pregada no
mundo que ela mesmo mediou na Criação.
É, portanto, a natureza que está
envolvendo o evento da revelação, de modo que esta ocorre como um fato entre
outros, na ordem natural. Ora, se a natureza pressupõe a revelação no sentido
ontológico e, se no sentido cronotópico, é a revelação que a pressupõe, que se
conclui, então? Obviamente, que estas duas coisas estão indissociavelmente
ligadas, de maneira que uma não pode ser apartada da outra porque são
pressuposições mútuas; tanto no sentido ontológico quanto no sentido cronotópico,
as duas coisas estão implicadas uma na outra.
Desse modo, a verdade
revelada, — o Verbo divino, o qual é o Discurso de Deus — encontra-se em meio a
natureza e, simultaneamente, a pressupõe. No entanto, ele se volta para ela, e de
dentro dela emerge, se constituindo na fonte e no caminho da sua redenção.
Essa mesma revelação, que
pressupõe o mundo natural, dele não pode se afastar porque ontologicamente esse
mundo foi fundado por ela; o universo foi feito por meio desse discurso divino,
de onde se pode concluir, que entre a Natureza criada e a Revelação, subsiste uma
perfeita harmonia. Consta entre eles uma relação de concordância, na qual o
mundo criado é uma condição para revelação, sob um aspecto, e a revelação é uma
condição para o mundo, sob outro aspecto.
3. Dialética
na relação entre Natureza e Revelação
Há variados níveis de tensão
entre essas duas realidades. Por exemplo, a mensagem divina não deve ser
enfocada somente como discurso ou argumentação, mas sim como baseada na relação
que ela estabelece com a natureza, a qual é igualmente pregada, por estar
implicada na mensagem. Ao ser anunciada, a revelação tem um mundo e um pano de
fundo que a explica e a corporifica. Esse mundo lhe dá um sentido e uma
substância, a veste, por assim dizer, de carne e ossos.
A compreensão da revelação,
portanto, implica em uma compreensão e apreensão do mundo tal como criado por
Deus ou pervertido pelos homens. Sem a consciência dessa relação, a mensagem divina
se tornará algo por si mesma, isto é, o puro verbalismo.
Ora, uma coisa por si mesma,
ela nunca foi e nem será. Quer dizer: revelação é sempre revelação de algo, e
esse algo revelado, é o que dá substância a ela. Se for anunciado o pecado, a
compreensão e apreensão da mensagem, depende da realidade do pecado; se a
palavra revela o Salvador, a sua perfeita compreensão e sentido, depende da
existência desse Salvador e de que a salvação, factualmente, ocorra.
É importante lembrar que a revelação
total de Deus se encarnou, tomando a forma da realidade criada, e isto, para
que pudéssemos de alguma forma compreendê-la e entendê-la e, desse modo,
compreender algo de Deus e de nós mesmos. Jesus Cristo, o Verbo encarnado é o clímax e a síntese perfeita dessa tensão dialética entre a revelação e a natureza. Portanto, ao menos para o homem, é
necessário que a revelação se corporifique.
Encontra-se, desse modo, mais um aspecto dessa
dialética, a qual é o testemunho do crente, pois quando o crente prega a autêntica
revelação e a vive, ele a tira do terreno do verbalismo e do formalismo
teológico, inserindo-a no mundo como algo concreto, tangível e corpóreo. Conclui-se
que a revelação divina nunca foi somente discurso. Mesmo quando se considera
somente a palavra falada, tal é o seu efeito, que o apóstolo Paulo ensina ser
ela, o poder de Deus para a salvação do homem pela fé.
Devemos, entretanto, aclarar
como se dá essa dialética entre a natureza e a revelação, pois ela não revela somente
o mundo perfeito criado por Deus, como também, desvela ante os nossos olhos, o
mundo decaído, que está em ruínas; ela descreve e expõe os pecados dos homens.
Nesse sentido, ao descrever o
pecado, significa que este seja a substância da revelação? De forma alguma, mas
sim que a realidade do pecado é necessária para a revelação ter um sentido e ser
verdadeira. Desse modo, ela é verdadeira quando expõe o pecado, porque existe o
pecado, mas, o pecado não existe pelo fato de a revelação ser verdadeira, posto
que ela não constituiu o pecado no mundo, mas somente o expôs.
De fato, a revelação se
encontra relacionada à realidade, pois se algo existe, não pode ser revelado
como não-existente, contudo, nem tudo o que existe, tomou forma no mundo pela
revelação. Qual é a grande questão? É
que nem tudo o que está na natureza surgiu da revelação. O pecado, por exemplo,
não surgiu pela palavra divina, porque tudo quanto Deus fez, a Bíblia nos narra,
é perfeito, bom, e agradável, mas o pecado não é nada disto.
Ademais, o pecado não é uma
substância, segue-se então que ele não pôde mesmo, ter surgido da revelação
divina. Ora, pela palavra, se deu forma àquilo que é uma substância, fosse ela
espiritual, material ou de qualquer outra natureza que desconheçamos. O fato é
que a palavra concede existência somente a coisas que possuirão uma substância,
o que lhes permite serem apreendidas. Ora, o pecado, não sendo uma substância, não
pôde ter sido derivado ontologicamente da revelação.
Então podemos entender que,
quanto ao pecado, a revelação somente se relaciona cronotopicamente, e não
ontologicamente. Quanto às demais coisas, ela se relaciona das duas formas:
ontológica e cronotópica.
Desse modo, fica claro que a comunhão
da revelação só ocorre, em sentido ontológico, com algo que é da própria natureza
da revelação, ressaltando o pecado como algo que é antinatural. Aquilo que é antinatural
não pode ter nenhuma relação de derivação com a palavra. O pecado, portanto,
somente pode ser descrito e exposto pela palavra divina.
A única conclusão viável e
bíblica é que o pecado não é natural, se inserindo, portanto, naquele rol de
coisas, com as quais, a revelação mantém somente uma relação cronotópica e não ontológica,
quer dizer: o pecado não participa da substância da revelação, e nem a
revelação participa da constituição dele, visto que nem mesmo uma substância
ele possui. Ele não participa da ordem que Deus criou, mas é precisamente o
princípio de toda desordem.
A questão dialética,
entretanto, não se encerra com a elucidação deste aspecto, pois, se por um lado
o pecado instaura a desordem, é certo que a revelação nos prescreve uma
redenção. Deste modo, nos surgem mandamentos a cumprir, isto é, um caminho a
trilhar. Ora, este caminho, conforme as escrituras, Jesus já consumou,
tornando-se o nosso supremo exemplo. Ele mesmo é a porta que dá acesso a essa
jornada, é a viagem em si, e a consumação do roteiro proposto. Tudo se consumou
nEle. E, da mesma forma, deve consumar-se, por meio dEle, em nossa vida.
Mas se esta é uma revelação que
deve se consumar em cada vida, segue-se que ela possui natureza prescritiva,
donde surge o caráter normativo da revelação. Assim, o último aspecto dialético
entre revelação e criação é esse caráter normativo do texto inspirado por Deus.
4. Como se relaciona a revelação
com o conteúdo da pregação e com a vida do pregador?
A primeira coisa a ser
considerada é que, biblicamente, a palavra é poderosa em si. Isto não significa
que ela não se refira a nenhuma realidade, mas, ao contrário, que ela é a única
Palavra que se refere aquilo que é verdadeiro e real e, nesse sentido, a
palavra não pode ser contaminada pela mentira do pregador. A mentira não pode
afetar a palavra, posto que ela não se refere a nenhuma verdade; assim, um
pregador que prega a verdade, e não a vive, está se enganando e levando os
outros ao engano.
Há, no entanto, outra
situação que não trata somente de viver ou não a palavra, mas de conceder a ela
um sentido diverso do que ela possui; no bojo dessa prática, a palavra é
claramente entranhada de um sentido alheio ao texto bíblico. Nessa hipótese se
tem uma complicação, pois, a palavra ministrada, não se refere a algo que
exista concretamente, mas, a coisas que se encontram somente dentro daquela interpretação
que foi lhe dada, ou seja, são realidades que existem somente como discurso e
não como natureza.
Nessa situação, o conteúdo do
que é pregado ou interpretado, não pode ser chamado, propriamente, de palavra
ou de revelação, mas somente de aparência de uma revelação. Essa falsa revelação
provoca uma verdadeira confusão no ouvinte, não sendo apta para salvar ou
instruir alguém.
Outra, entretanto, é a situação
da pessoa que prega corretamente a palavra, mas a vive, sinceramente, de forma
contrária, isto é, ele vive acreditando que está vivendo verdadeiramente a
palavra. Esse indivíduo, prega e ministra a palavra, acreditando de todo
coração que a vivencia, no entanto, não a experimenta, de fato.
Aqui também se fará uma
confusão na mente de quem ouvir tal mensageiro, porque o elemento da
sinceridade na vida dele, transmite a segurança de que ele está falando a
verdade, visto que a sinceridade é um elemento que integra a força da verdade. Não obstante, por esse indivíduo estar
vivendo uma mentira, o ouvinte pode ser levado ao erro, uma vez que ele estará
se apegando àquela verdade dita e, simultaneamente, a conectando a uma falsa
realidade.
A situação virtuosa, somente ocorre
quando o pregador ministra a verdade e se esforça, com sinceridade, para nela
andar. Neste caso, todos os seus sentidos espirituais funcionam adequadamente.
Ele se acha vigilante em todo o tempo e, embora possa se enganar, ele vive a
palavra efetivamente, porque é na tentativa sincera de viver a palavra e, em estrita dependência divina, que ele é abençoado por Deus, sendo virtuoso.
Resumindo temos:
a)
O pregador prega a verdade,
mas vive uma mentira, sabendo que vive na mentira. Nesse caso ele está se enganando
e enganando aos outros;
b)
O pregador distorce a palavra
revelada e, independente dele a viver com sinceridade ou não, ele cria e
fomenta uma alienação, uma dislexia entre a palavra e a sua interpretação, de sorte
que a palavra que ele prega não pode ser chamada de revelação bíblica,
propriamente;
c)
Temos a situação da pessoa
que prega a verdade, mas conectou essa verdade a um estilo de vida que a
desmente, porém, fez isso com absoluta sinceridade, julgando que vive realmente
uma fé autêntica. Nesse caso, se coloca diante das pessoas uma concretização
falsa da verdade, ou seja, a vida desse pregador não serve para dar corpo ao
evangelho e, independentemente de sua sinceridade, ele está apenas,
sinceramente enganado;
d)
Por fim, temos o caso
virtuoso, onde a realidade do pregador evangélico serve como algo adequado
aquilo que a revelação prescreve. Nessa situação, tanto se combate eficazmente
a realidade decaída, quanto se perfaz o caminho adequado da redenção. É que se
encontram nesse indivíduo virtuoso aquelas características que a revelação
exige: a renúncia de si, a fé sincera, a mortificação da carne, a
santificação e a sincera dependência de Deus;
Ante todo o exposto, se pode concluir que, nos três primeiros casos, os indivíduos vivem a palavra somente
como discurso, mas não como realidade efetiva. A palavra não tomou forma nas
suas vidas, exceto como a revelação de sua própria perversidade. Cuida-se de
patente autoengano.
5. Conclusão
De resto, a revelação jamais
deve ser tomada como simples narrativa ou discurso. Seja como o princípio de
tudo o que existe, ou como o princípio da restauração do mundo caído e
arruinado pelo pecado, a palavra divina é eternamente poderosa. A sua eficácia
não está sujeita aos caprichos humanos, posto que ela não tem origem em nossa
vontade ou interesse. Em verdade, a palavra revelada é decreto divino e, como
tal, se cumpre fielmente, seja para criar, simplesmente descrever ou ainda para
alterar o feitio de todas as coisas. A natureza, por fim, não é um terreno onde
não vigem as leis divinas, porém, sendo ela o produto da palavra revelada, só
pode ser concebida como ordenada e estruturada, devido a essa mesma palavra. Em
síntese: só há uma natureza organizada onde há uma organização pela palavra
sagrada.
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