sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Interesse e Ideologia: uma análise da polarização política brasileira


I - Introdução

A questão que nos propomos tratar de forma breve, diz respeito a vinculação existente entre os interesses e as ideologias, a origem da polarização política no Brasil e a forma como as ideologias atuam e interagem para formar o atual estado de coisas.

II – Breve histórico do termo “Ideologia” e sua vinculação ao “Interesse”

É conhecido o adágio popular, aliás, muito difundido atualmente, de que “interesses não tem ideologia[2]. Tal provérbio parte da constatação de que os interesses são sempre particulares, enquanto as ideologias são ideais teóricos, por vezes inalcançáveis, verdadeiras utopias. O defensor dessa ideia conclui afirmando que na seara da política, os purismos ideológicos devem ser evitados; deve imperar o pragmático, aquilo que resolve efetivamente as coisas.

Apesar da força persuasiva dessa percepção, estou convencido de que na realidade sucede quase o contrário, ou seja, que “não há ideologia sem interesse”.

Passemos a considerar as razões para isto.

O termo “ideologia” foi cunhado por um tal Antoine Destutt de Tracy, filósofo iluminista francês, para designar o estudo das ideias. Contudo, o termo viria a ser polissêmico pelos usos diferenciados que lhe sobrevieram, sobretudo na obra de Karl Marx. Foi este quem lhe emprestou a atual conotação negativa: ideologia como sendo as ideias dominantes que alienam as consciências dos homens, e facilitam a dominação das massas pelas elites.

No marxismo, a ideologia é vista como um mecanismo de dominação e alienação. Tudo passa a ser ideológico, pois em tudo os teóricos do marxismo veem meras superestruturas que servem aos interesses dominantes. É por essa via que a religião se torna o ópio do povo; as instituições sociais (escolas, prisões, hospitais, etc.) se tornam centros onde as massas são adestradas e aprendem os valores dominantes e, enfim, onde toda a sociedade se torna subserviente aos caprichos de capitalistas.

Curiosamente, talvez mesmo sem perceber, Marx et caterva, atrelam a noção de “ideologia” a ideia de “interesse”. Eles postulam em outras palavras que a ideologia burguesa é aquela na qual se justificam teoricamente os interesses da classe burguesa. Eis a razão dos burgueses em defendê-la. De fato, qualquer resistência burguesa ao progresso da causa comunista, era vista em termos da defesa de seus próprios interesses. Os comunistas, marxistas e socialistas estavam, portanto, convencidos de que os burgueses mesmo quando diziam coisas verdadeiras, o faziam em proveito próprio.

A irônica surpresa sucedeu, entretanto, quando o bloco comunossocialista que nominava os burgueses de ideólogos, passaram a ser vistos como integrantes de uma ideologia. Tragicomicamente, as outras classes constataram que os comunistas e simpatizantes, também estavam unidos por interesses comuns. Pior: toda teoria marxista parecia ser, ademais, a justificativa perfeita para os seus interesses. Mais ainda: a teoria parecia ter sido construída a partir dos interesses classistas.

De resto, é evidente que o interesse de classe se tornou o elemento articulador dos postulados teóricos marxistas: é dizer, só é aprovado no corpo da aludida teoria ideológica, aquilo que justifica e contribui para o progresso dos interesses e causas comunistas. Ora, à luz do exposto, não há como compreender o fenômeno ideológico sem penetrar nos interesses que movem a ideologia. Com efeito, “não há ideologia sem interesse”.

A vinculação entre interesse e ideologia está suficientemente estabelecida. Contudo, antes de avançarmos para o caso brasileiro, façamos algumas observações.

III – A noção de Ideologia: seus elementos constitutivos

Em primeiro lugar, convêm diferenciar a teoria científica da teoria ideológica. Aquela, concebida por Aristóteles, consiste em um saber necessário acerca da coisa. Busca apreender o quid est (o que é). Tal saber não decorre de uma opinião, desejo ou vontade do pesquisador, antes é um conhecimento que surge das relações presentes na coisa mesmo, e que, portanto, se impõem ao cientista. A episteme aristotélica, é o saber desinteressado; desinteressado, porque não surge como obra de um interesse do cientista, mas como consequência imposta pela pesquisa assim conduzida. No dizer de C. S. Lewis, o verdadeiro cientista segue os argumentos até as consequências necessárias dele. Dito de outro modo, o conhecimento verdadeiramente científico se impõe por necessidade e não por conveniência ou vontade. Eis aí o saber demonstrativo, aquele pelo qual o logos da coisa se mostra de forma apodíctica[3].

A teoria ideológica, entretanto, possui como fundamento um interesse, uma vontade. Não se cuida de um saber necessário, mas de um conhecimento que se impõe sobre a realidade, para fazê-la cumprir um desígnio que lhe é estranho. Na teoria ideológica, a episteme se subordina ao interesse do ideólogo. A coisa real é estudada dentro de um cosmos fabricado pelo cientista. Não há verdadeira ciência; há apenas a ciência que interessa à causa, aos interesses que são defendidos. Obviamente, há elementos de verdade na teoria ideológica, visto que nenhum ser humano defende algo que seja totalmente irrazoável, contudo, essas verdades são escravas da causa que move a ideologia. O reinado aí, não é da verdade, mas dos interesses ideológicos.

Em segundo lugar, nem todo interesse é ideologizado. Com isso quero dizer que um interesse para ser ideológico, precisa ser teoricamente justificado ao ponto de compor uma cosmovisão, ou seja, ele deve fundamentar um estilo de vida.

Convém ainda esboçar a noção de “visão ideologizada”. Esta consiste em um modo de ver o mundo que é próprio de um ideólogo. Sua principal característica é a percepção neurótica de que por trás de tudo, há sempre um interesse de uma elite dominante ou de um grupo que aspira à dominação. A pessoa que desenvolveu essa visão, julga encontrar os “interesses” da classe ou grupo que ela combate em quaisquer detalhes, acontecimentos, notícias, etc. Todos os acontecimentos passam a ser interpretados em termos dessa luta entre classes ou grupos. Obviamente, a visão ideologizada é parcial, sendo por isso denominada por alguns como um delírio de interpretação da realidade[4].

Notemos por fim, os elementos que compõem uma ideologia: a) em primeiro lugar um interesse ideologizado; b) uma causa e um projeto de ação, os quais derivam diretamente do interesse visado; c) uma teoria ideológica que justifique o interesse, a causa e o projeto de ação; d) uma plêiade de adeptos, que se dividem em dois grupos: o primeiro constitui a elite intelectual, os formadores da teoria e cosmovisão ideológicas. O segundo é constituído dos que vivem sob a égide dos mandamentos da ideologia, os quais podem ser meros praticantes ou militantes.

Munidos destas informações passemos a análise da situação político-ideológica em nosso Brasil. Vejamos inicialmente quais são os grupos ideológicos em voga. Depois veremos, em cada um deles, aqueles elementos que formam as ideologias como tais.

IV – Grupos ideológicos no Brasil

Temos de um lado do espectro a chamada esquerda política. Esta congrega a simpatia e apoio de grande parte da população (movimentos sociais, sindicatos, comunidades eclesiásticas, etc.); uma variedade de partidos políticos alinhados à linha ideológica marxista, comunista e socialista (PT, PC do B, Psol, PSDB, etc.); grupos com características de guerrilha como o MST; facções criminosas, a exemplo do Comando Vermelho; detém ainda a hegemonia na grande mídia televisiva, nas universidades e escolas, e nos altos escalões das instituições políticas.

Do outro lado, temos a chamada direita política. Esta também congrega o apoio e simpatia de grande parte da população (em sua maioria denominações evangélicas e setores da igreja católica, algumas associações civis recentes, etc.); uma variedade de partidos políticos alinhados ao liberalismo político-econômico e ao conservadorismo nos costumes (PL, NOVO, PRTB, Republicanos, etc.); grupos militares e paramilitares; detém a hegemonia em três setores estratégicos: redes sociais, na classe média e na comunidade evangélica.

Há, ademais, outro grupo ideológico, praticamente ignorado no Brasil, ressalte-se que mais por suas características, do que por uma inépcia intelectual do povo. Trata-se do centrão. O centrão constitui uma ideologia parasitária, cuja característica principal é servir-se dos antagonismos sociais, polarizações, interesses opostos, etc., para sobreviver. Esta característica peculiar, lhe permite ocultar-se, e por estar no centro dos contendores, posar de prudente, mediador de conflitos, equilibrado, etc., enquanto retira da briga tudo o que é útil para a sua vida de luxo. Voltaremos a falar dele mais tarde. Por ora, cumpre frisar que ele também congrega grande parte da população. Sim, grande parte da população apoia ou concorda com a ideia de que na política o que menos importa são os ideais “puros”, e o que vale mesmo é se beneficiar e se dar bem. Tal é o núcleo da ideologia do centrão, uma ideologia tipicamente brasileira. Mas cuidado, o centrão, por ser um parasita, não deve ser buscado em siglas partidárias, mas sim em atitudes dos políticos. Desde esse ponto de vista se vê como grande parte dos políticos busca majoritariamente os seus interesses e a sobrevivência na política, mesmo quando buscam interesses alheios. Daí que o centrão constitua a essência da prostituição política brasileira, e a definição mesmo da politicagem no Brasil. Com efeito, quando, neste país, se fala em “sistema”, de outra coisa não se fala, senão desta ideologia centrista que vive da seiva que corre nas demais ideologias, sendo uma espécie de corrupção da corrupção, visto que toda ideologia já é uma corrupção da verdade. Desse modo, o centrão, embora conte com o apoio ou concordância de grande parte da massa, se constitui em sua quase totalidade, no próprio estamento político.

Creio que haja outras ideologias vigentes no Brasil, mas estas três são as que interessam ao presente estudo, visto que integram o cerne dos debates acerca da polarização. Passemos a descrever os elementos ideológicos de cada uma.

V – Elementos ideológicos da Esquerda

Principiemos com a ideologia comunossocialista ou esquerdista.

A esquerda, nome que aqui designa todo um complexo de ideias e doutrinas unidas por um interesse prevalente na noção de sociedade igualitária, não se ideologizou, mas nasceu efetivamente ideológica. É, de fato, a primeira ideologia no sentido negativo em que o termo foi utilizado no marxismo. Com efeito, os textos de Karl Marx constituem, sobretudo uma apreciação do mundo, que tem como viga mestra, os interesses do proletariado e a denúncia da burguesia como o mal a ser extirpado. A construção teórica, embora aspire ao caráter científico, possui como ponto de articulação a reunião de elementos que favorecem a causa proletária. O objetivo de sua teoria não é a descoberta da verdade acerca das coisas, mas a sua transformação a partir da percepção de uma opressão que a classe trabalhadora sofre. O ponto subjetivo desde o qual a teoria se constrói, portanto, não é cientificamente válido, porque não é sinceramente científico. Efetivamente, é a visão ideologizada que guia a formulação teórica esquerdista: uma vez definido o inimigo, tudo passa a ser visto em termos de um dualismo, onde a realidade é reduzida a um confronto entre proletários e burgueses.

Quanto aos interesses ideologizados e por alcançar, temos declaradamente os seguintes: a) sociedade igualitária sem classes e/ou Estado (utopia); b) ausência de religiões ou de qualquer sistema que implique em hierarquia ou dominação; c) sistema de justiça baseado no lema “Cada um segundo suas capacidades; a cada um segundo suas necessidades”, localizado no topo do processo revolucionário; d) sistema econômico baseado na propriedade coletiva (livre associação) dos bens/meios de produção (ausência de propriedades privadas).

Desses interesses, surge a causa comunossocialista, o seu projeto e as suas formas de ação. Façamos a sua lista mínima: a) estatização crescente da economia, juntamente com taxação progressiva, como forma de minar gradativamente a propriedade privada, passando-a ao domínio do Estado; b) no bojo da linha marxista-leninista, temos a instauração da ditadura do proletariado, e a derrubada violenta da classe burguesa (formação de guerrilhas, facções, etc.); c) no seio da linha marxista-gramsciana, a destruição inicial dos valores e princípios que formam a chamada superestrutura ideológica, a qual “justifica” a base econômica burguesa (infraestrutura). Tal estratégia deu origem a guerra cultural e ao marxismo cultural. Cumpre frisar, no entanto, que no modelo chinês, adotou-se o capitalismo no plano econômico e um controle ideológico rígido. Tal postura não significa outra coisa, senão a negação e a perfeita inversão da própria teoria comunista, uma ironia comicamente atroz; d) fomento de pautas identitárias e promoção do lumpemproletariado (população LGBT, criminosos, marginais, moradores de rua, etc.); e) desconstrução da linguagem e ressignificação de termos e palavras (novilíngua); f) aparelhamento e ocupação de instituições sociais (universidades, rádios, mídia tradicional, parlamento, partidos políticos, igrejas, comunidades, associações, grêmios estudantis, sindicatos, etc.).

No plano da teorização ideológica, a causa comunista assenta-se em três pilares, amplamente difundidos: materialismo histórico e dialético, luta de classes e ateísmo. Subjaz os seguintes pressupostos teóricos: naturalismo, evolucionismo e darwinismo social. Conectando todos estes pontos temos o relativismo moral, e a crença de que a consciência/espírito humano é um produto do funcionamento do cérebro, e as ideias, o resultado das interações e relações materiais.

No que tange aos adeptos, a ideologia esquerdista se mostra a mais amadurecida. Possui uma elite intelectual, com farta bibliografia e tradição. Possui, ademais, um número incontável de sectários que consomem esses materiais e vivem sob a égide dessa orientação intelectual, e possui ainda a chamada “militância”, constituída de ideólogos profissionais. Tal militância, costuma aparecer como sinal de amadurecimento e recrudescimento da ideologia, e tem como tarefa principal a luta ostensiva contra os inimigos e a manutenção do caráter orgânico do grupo.

Vejamos agora a ideologia direitista ou conservadora.

VI – Elementos ideológicos da Direita

Esta ideologia é relativamente recente. Surge a partir da união do conservadorismo político com o conservadorismo nos costumes. Ela se molda desde o momento em que ambos os grupos percebem a esquerda como inimiga, e se articulam em torno de interesses comuns. Essa articulação de interesses só foi possível com o progresso do marxismo cultural promovido pelo gramcismo. No Brasil, a sua gestação fora longa, em especial no submundo periférico das redes sociais, mas sua primeira erupção pública ocorre com as manifestações em junho de 2013: ali ela aparece indistinta, indecifrável, envolta em fumaças de descontentamento, sem um rumo certo ou liderança que a representasse, ela aparece, em suma, como pura força. Viria a ganhar um líder mais tarde, em 2018, na figura de Jair Bolsonaro. Nesse ponto, já vai adquirindo alguma consistência e organicidade, mas ainda lhe faltará arquitetos que lhe definam a exata compleição. A imagem paralela da direita americana lhe fornecerá alguns padrões, contudo, não seria ainda o suficiente para lhe aquilatar as faces.

Passemos aos seus interesses. Estes, diferentes dos interesses esquerdistas, já existem, e se buscam pela conservação. Vejamos: a) na economia, princípios liberais, técnicos, com liberdade econômica (economia de mercado, ou seja, capitalismo); b) na política, a defesa do Estado Mínimo ou suficiente, com funcionalidade afeita à segurança pública e defesa dos interesses nacionais e proteção dos direitos individuais; c) manutenção da propriedade privada e da internet sem censura ou controle estatal; d) no plano da moral e costumes, defesa da vida, da família, e do casamento; e) defesa dos valores judaico-cristãos, e dos princípios da democracia liberal e técnica.

Com relação a causa, projetos e meios para alcançá-los, a recém-ideologizada direita, adotou os seguintes: a) aumento da representatividade política; b) promoção de uma educação conservadora, por meio da criação de sistemas alternativos a educação pública oficial (homeschooling, canais como o Brasil Paralelo, canais de influencers nas redes sociais, fortalecimento de escolas confessionais, militares, etc.); c) formação de uma elite intelectual de orientação liberal e conservadora; d) formação de uma militância profissional.

Conforme exposto, a direita não nasceu ideológica, mas se ideologizou a partir do momento em que, tomando consciência de seus interesses, identificou a esquerda como inimigo a ser combatido. Desde esse momento, munida da visão ideológica, ressignificou as teorias científicas anteriores, para fazê-las caber dentro da guerra cultural. A ideologia direitista ainda não possui uma teoria ideológica bem definida, mas os seus traços gerais, já podem ser percebidos. Com efeito, se trata de uma mescla de teoria econômica capitalista clássica, doutrina do Estado Mínimo e valores judaico-cristãos. Nessa visão coexistem dogmas que agora tentam se conciliar, a exemplo da lógica de mercado capitalista no liberalismo, com a ortodoxia cristã. Com efeito, a síntese dessas tensões internas costuma sair pelas válvulas do pragmatismo ou utilitarismo.

Por fim, quanto a uma elite intelectual direitista, entendemos que apesar de recente, ela conta com um número considerável de formadores de opinião, que militam especialmente pelas redes sociais. Merece destaque a figura de Olavo de Carvalho, que durante décadas foi uma das poucas vozes contra a esquerda no Brasil. No lado do denominacionalismo evangélico, sempre houve autores que combateram, ao menos no plano teórico, a visão esquerdista, não obstante, Carvalho revelou as estruturas reais do comunismo. Foi, em certo sentido, o responsável por encarnar o combate e formar o caráter ideológico da direita. Sem dúvida, foi um dos responsáveis por unir católicos, políticos liberais, militares e evangélicos, grupos tão distintos, a partir da articulação de um inimigo comum e de interesses comuns. Quanto aos adeptos comuns e militantes, estes se encontram em todos os estamentos sociais, com destaque para as igrejas evangélicas e classe média.

Vejamos, por fim, o enigmático centrão.

VII – Elementos ideológicos do Centrão

O centrão tem origem brasileira. Diferente das outras ideologias que se formam desde influências estrangeiras, o centrão, pode-se dizer: é nossa criação, aliás, uma das expressões mais claras de nosso espírito. É a imagem exata de nossa praxis política, a forma pela qual aprendemos a governar, constitui-se, por excelência, a ideologia do estamento político. A sua força reside em seu caráter parasitário, visto que é de seu jaez, nutrir-se dos conflitos e tirar vantagens dos antagonismos. No Brasil, ele define a governabilidade do gestor. Sempre foi uma ideologia, mas apenas agora, se teve o momento em que sua face ideológica se mostrou claramente pela repetição ostensiva de seu modus operandi.

Façamos a lista de seus interesses ideologizados: a) primeiramente, a sobrevivência estratégica da política, pela constituição de um “jogo político”, a politicagem, comumente denominada na literatura de “fisiologismo político”; b) visa ainda, constituir-se como instância instauradora da ordem política, isto é, como “sistema” que define quem é candidato, quem se elege, quem figura e desponta no jogo, em suma, como a instância que instaura os termos do manual de sobrevivência na política; c) busca o seu reconhecimento como instância mediadora e negociadora dos conflitos e antagonismos políticos, para por meio disso, impor-se como indispensável ao triunfo de qualquer candidato ou de qualquer causa; d) por fim, aspira a manutenção de seu poder político e legitimador.

Desses claros interesses decorre a sua causa, os seus projetos e os seus meios de ação. Vejamos: a) o dito centrão atua por meio de um posicionamento estratégico, o qual parte de sua não vinculação a nenhuma teoria ou ideal específico. Esse distanciamento ideológico, é parte vital de sua atuação, pois só assim, ele pode concentrar-se em sua ideologia própria, que é o seu próprio interesse; b) atua ainda por meio da troca de favores (famoso toma lá, dá cá), por meio dos quais, consegue exercer pressão sobre os diferentes grupos; c) ele define efetivamente a governabilidade, ainda que não esteja nos cargos de mando, por meio da sua atuação. Um bom exemplo disso, é a compra de apoio parlamentar, o mensalão, as emendas parlamentares, etc.; d) por fim, o centrão impõe-se como cultura política, no sentido, de que tanto os que já são políticos como os que buscam nela ingressar, tem de curvar-se ao seu fisiologismo.

Passemos a analisar os seus fundamentos teóricos. Ao contrário do que parece à primeira vista, o centrão não atua sem uma teoria que lhe oriente a ação. Três filosofias, ao menos, embasam a atuação centrista, a primeira é o utilitarismo, a segunda é o pragmatismo, e a terceira é a ética maquiavélica. Do utilitarismo, o centrão e aqueles que simpatizam dele, colheram a ideia de que o útil somente, deve ser buscado. Útil é o que traz algum benefício concreto. Eis aí o ponto de conexão com o pragmatismo. O centrão busca o que é útil e o que funciona. Tudo isso é teórico e fruto de profundas reflexões de filósofos com John Locke, Stuart Mill, William James, entre outros. A estas filosofias, no entanto, soma-se a ética maquiavélica; esta pretende um senhorio das circunstâncias, positivas ou negativas que surgem, de modo a garantir a ascensão ao poder político e a permanência e sobrevivência nele. O senso comum resumiu a ética maquiavélica no axioma “os fins justificam os meios”. De fato, a ideologia do centrão promoveu uma instrumentalização dessas filosofias para que elas constituíssem a justificativa teórica de sua atuação parasitária. Curiosamente, o ditado “interesses não tem ideologias” é um postulado básico da ideologia centrista, pois por meio ele, o centrão promove a sua imagem de um atuar pragmático, útil e sem apelo a purismos teóricos. Com efeito, um grande número de pessoas, na tentativa de fugirem a polarização direita-esquerda, terminam por assumir, como por uma trágica e macabra ironia, os postulados básicos da ideologia maquiavélica do centrão.

Quanto a presença de adeptos, o centrão possui grande número, tanto no corpo do estamento político, quanto fora dele. Há efetivamente cidadãos comuns que votam em quem lhe ajuda, e buscam beneficiar-se da política segundo a mesma lógica da ideologia centrista. De igual modo, são conhecidos de toda a população brasileira, aqueles figurões da política, que são a encarnação e os mentores da ideologia fisiologista.

Ora, as demais ideologias não são naturalmente políticas, no entanto, tiveram de politizar-se para fazer avançar as suas pautas. O centrão, contudo, é a expressão da política nacional, e quem entra em seu território, tem de seguir o seu jogo. Ou se governa com ele, ou ele tira do governo. É desse modo que a ideologia centrista exerce o seu fascínio e a sua força, isto é, pelo seu excesso de corrupção, que corrompe até aquilo que já é corrompido. Esse modo de atuação, permitiu ao centrão estabelecer a política como um espaço próprio, onde reina a corrupção: na política, se admite somente os que querem corromper-se e beneficiar-se dela; fora dela, no entanto, os anjos podem existir, e se quiserem permanecer puros devem conservar-se bem longe. Como toda ideologia, o centrão possui os seus militantes, mas diferente das outras, destes não se exige outras virtudes, senão aquelas de mudarem tantas vezes quantas forem necessárias para se dar bem e se perpetuarem no poder.

Em síntese, a análise dos elementos das ideologias, permitiu concluir que os esquerdistas buscam os seus interesses pela revolução, os direitistas, pela sua conservação, e os centristas pela atuação parasitária. Mais: os interesses da esquerda e da direita, incluem e transcendem os seus militantes, integrando-os em um projeto de mundo e sociedade, mas os do centrão, são corporativistas e particulares, procedem, portanto ao inverso.

VIII – A polarização política brasileira: origem e características

A origem do fenômeno denominado “polarização política”, ao menos no Brasil, pode ser encontrada no exato momento em que a direita, entendida como um bloco constituído pela união do conservadorismo político e o conservadorismo nos costumes, se ideologizou, isto é, quando os seus interesses comuns foram ameaçados ao ponto de se estabelecerem como um eixo teórico articulador de uma cosmovisão conservadora do mundo.

Esta ideologização, não ocorreu em um instante, mas foi progressivamente instigada, sobretudo, pelo despertar das consciências, para elevar ao primeiro plano a guerra cultural e identificar na esquerda o inimigo a ser derrotado. É óbvio que a esquerda, como tal ideológica, sempre viu nesse bloco conservador, até então sem nenhuma organicidade, um todo coeso e articulado a ser combatido. Cedo ou tarde, portanto, um polo organizado e contrário a existência do esquerdismo, haveria de se formar como reação. Quando ele toma forma e surge, o fenômeno da polarização é a consequência imediata. A polarização, portanto, se dá entre esquerda e direita; porém, aqui no Brasil, possuímos o centrão como agente que administra, gere e tira proveito dessa tensão.

A característica central e distintiva dessa polarização é a incapacidade de se articular um diálogo entre os polos. Tal fato resulta, sobretudo, da ausência de um princípio superior no âmbito do qual algum ponto de convergência entre os polos possa ser encontrado. Com efeito, os polos em questão se veem como mutuamente excludentes, e não toleram a existência um do outro. A ausência de diálogo é sintoma da ausência de mútuo entendimento; e a ausência de entendimento, significa que reina a ignorância. Ora, o reinado da ignorância demonstra que a crise que se instaurou entre os polos, não dará à luz a nenhum conhecimento, mas é pura violência e guerra.  Daí, outra coisa não resultará senão destruição e mortes.

IX – Polarização política e as Ideologias

Consideremos como cada ideologia atua e contribui com a polarização.

A esquerda, pode-se dizer, é a ideologia na sua expressão mais pura, visto que no seio de seu desenvolvimento, ela nada respeita, a não ser a sua própria causa. O sentimento ideológico, como vimos, é o que faz despertar a consciência ideológica. Desse modo, a esquerda é a grande força geradora das polarizações, sobretudo no Brasil. Eis a sua contribuição: ela despertou o direitismo como um bloco inimigo ao tratá-lo dessa forma. A sua hostilidade foi o combustível que alimentou a formação da consciência ideológica da direita. Autores, como Olavo de Carvalho, apenas deram forma e expressão a essa consciência.

Quanto à direita, temos que ela vestiu a carapuça de “inimigo da esquerda” e sucumbiu a visão ideologizada de mundo, abraçando a mesma parcialidade típica daquela ideologia. Desde então, o direitismo apartou-se da sociedade como se lhe representasse os interesses, passando a combater sua arqui-inimiga com idêntico provincianismo.

Pior, no entanto, foi ver no Brasil, o cristianismo ceder perante a ideologização da sociedade. Com efeito, a Igreja de Cristo, pela sua própria posição como “coluna e firmeza da verdade”, constitui o ponto desde o qual as ideologias podem ser adequadamente esquadrinhadas e julgadas. Porém, este não é o local para tratarmos desta questão. Em outro lugar escrevi algo a respeito, para onde remeto o leitor[5].

Quanto ao centrão, dada a sua natureza parasitária, percebe-se que ele não deseja a morte ou destruição de nenhum dos combatentes. Quer dizer: ele deseja a guerra, mas não a vitória completa de nenhum dos lados. Com efeito, ele faz concessões aos dois lados, contribuindo com o avanço parcial deles, sem que, no entanto, isso configure a total sobreposição de um sobre o outro. Ao mesmo tempo, o centrão fisiológico, aproveita esse seu jogo para posar de prudente, equilibrado, sensato ou isento de interesses. De fato, muitos, cuidando não serem de esquerda ou de direita, abraçam o centrão e fazem coro a sua atuação, defendendo inclusive o seu modus operandi como a única forma de se fazer política.

X – Conclusão: superando a polarização

A única maneira de vencer a polarização é recolocar-se acima dela. Isto significa rejeitar a apreensão ideológica do mundo e, por conseguinte, a visão ideologizada das coisas. Somente por essa via, a consciência deixará de se mover pelos interesses ideológicos e poderá se deixar guiar pela verdade mesma.



[1] Escritor, advogado e servo de Cristo.

[2] Eis os silogismos básicos que guiaram a sabedoria do povo na enunciação desse princípio: a) toda teoria é algo distinto da prática; b) a ideologia é sempre uma teoria; c) logo, a ideologia é teórica e não prática. Ao lado desse silogismo, construiu-se outro: a) toda teoria diz respeito ao universal; b) o interesse é sempre algo particular; c) logo, o interesse nunca diz respeito ao universal. Da fusão desses dois silogismos, resulta o seguinte: a) toda ideologia é teórica e sempre universal; b) o interesse é sempre particular e nunca universal; c) logo, o interesse não constitui ou possui uma ideologia.

[3] É importante trazer à tona a lição de Xavier Zubiri no clássico “Cinco Lecciones de Filosofia”: “A demonstração não é demonstração por ser silogismo, mas, ao contrário, o silogismo é demonstração porque a conexão dos lógoi na coisa mesma, nos faz ver nela a estrutura de seu ser necessário”.

[4] De acordo com o Dr. Paul Sérieux “Enquanto em geral as psicoses demenciais sistematizadas repousam sobre perturbações sensoriais predominantes e quase permanentes, todos os casos que aqui reunimos são, quase que exclusivamente, baseados em interpretações delirantes; as alucinações, sempre episódicas quando existem, não desempenham neles papel quase nenhum… A ‘interpretação delirante’ é um raciocínio falso que tem por ponto de partida uma sensação real, um fato exato, o qual, em virtude de associações de idéias ligadas às tendências, à afetividade, assume, com a ajuda de induções e deduções erradas, uma significação pessoal para o doente… A interpretação delirante distingue-se da alucinação e da ilusão, que são perturbações sensoriais. Difere também da idéia delirante, concepção imaginária, inventada ponto por ponto, não deduzida de um fato observado”. Extraído do artigo A inversão revolucionária em ação, disponível em: https://olavodecarvalho.org/a-inversao-revolucionaria-em-acao/.

[5] Refiro-me ao artigo “O atual cenário político e as escolhas do cristão”, disponível em: https://natanrodriguesadv.blogspot.com/2021/10/o-atual-cenario-politico-e-as-escolhas.html

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