I - Introdução
A questão que nos propomos
tratar de forma breve, diz respeito a vinculação existente entre os interesses
e as ideologias, a origem da polarização política no Brasil e a forma como as
ideologias atuam e interagem para formar o atual estado de coisas.
II – Breve
histórico do termo “Ideologia” e sua vinculação ao “Interesse”
É conhecido o adágio popular,
aliás, muito difundido atualmente, de que “interesses não tem ideologia”[2]. Tal
provérbio parte da constatação de que os interesses são sempre particulares, enquanto
as ideologias são ideais teóricos, por vezes inalcançáveis, verdadeiras
utopias. O defensor dessa ideia conclui afirmando que na seara da política, os
purismos ideológicos devem ser evitados; deve imperar o pragmático, aquilo que
resolve efetivamente as coisas.
Apesar da força persuasiva dessa percepção, estou convencido de que na realidade sucede quase o contrário, ou seja, que “não há ideologia sem interesse”.
Passemos a considerar as
razões para isto.
O termo “ideologia” foi
cunhado por um tal Antoine Destutt de Tracy, filósofo iluminista francês, para
designar o estudo das ideias. Contudo, o termo viria a ser polissêmico pelos
usos diferenciados que lhe sobrevieram, sobretudo na obra de Karl Marx. Foi
este quem lhe emprestou a atual conotação negativa: ideologia como sendo as
ideias dominantes que alienam as consciências dos homens, e facilitam a
dominação das massas pelas elites.
No marxismo, a ideologia é
vista como um mecanismo de dominação e alienação. Tudo passa a ser ideológico,
pois em tudo os teóricos do marxismo veem meras superestruturas que servem aos
interesses dominantes. É por essa via que a religião se torna o ópio do povo;
as instituições sociais (escolas, prisões, hospitais, etc.) se tornam centros
onde as massas são adestradas e aprendem os valores dominantes e, enfim, onde
toda a sociedade se torna subserviente aos caprichos de capitalistas.
Curiosamente, talvez mesmo
sem perceber, Marx et caterva, atrelam a noção de “ideologia” a ideia de
“interesse”. Eles postulam em outras palavras que a ideologia burguesa é aquela
na qual se justificam teoricamente os interesses da classe burguesa. Eis a
razão dos burgueses em defendê-la. De fato, qualquer resistência burguesa ao
progresso da causa comunista, era vista em termos da defesa de seus próprios
interesses. Os comunistas, marxistas e socialistas estavam, portanto,
convencidos de que os burgueses mesmo quando diziam coisas verdadeiras, o
faziam em proveito próprio.
A irônica surpresa sucedeu,
entretanto, quando o bloco comunossocialista que nominava os burgueses de
ideólogos, passaram a ser vistos como integrantes de uma ideologia.
Tragicomicamente, as outras classes constataram que os comunistas e
simpatizantes, também estavam unidos por interesses comuns. Pior: toda teoria
marxista parecia ser, ademais, a justificativa perfeita para os seus
interesses. Mais ainda: a teoria parecia ter sido construída a partir dos
interesses classistas.
De resto, é evidente que o
interesse de classe se tornou o elemento articulador dos postulados teóricos
marxistas: é dizer, só é aprovado no corpo da aludida teoria ideológica, aquilo
que justifica e contribui para o progresso dos interesses e causas comunistas.
Ora, à luz do exposto, não há como compreender o fenômeno ideológico sem
penetrar nos interesses que movem a ideologia. Com efeito, “não há ideologia
sem interesse”.
A vinculação entre interesse
e ideologia está suficientemente estabelecida. Contudo, antes de avançarmos
para o caso brasileiro, façamos algumas observações.
III – A
noção de Ideologia: seus elementos constitutivos
Em primeiro lugar, convêm
diferenciar a teoria científica da teoria ideológica. Aquela, concebida por
Aristóteles, consiste em um saber necessário acerca da coisa. Busca apreender o
quid est (o que é). Tal saber não decorre de uma opinião, desejo ou
vontade do pesquisador, antes é um conhecimento que surge das relações
presentes na coisa mesmo, e que, portanto, se impõem ao cientista. A episteme
aristotélica, é o saber desinteressado; desinteressado, porque não surge como
obra de um interesse do cientista, mas como consequência imposta pela pesquisa
assim conduzida. No dizer de C. S. Lewis, o verdadeiro cientista segue os
argumentos até as consequências necessárias dele. Dito de outro modo, o
conhecimento verdadeiramente científico se impõe por necessidade e não por
conveniência ou vontade. Eis aí o saber demonstrativo, aquele pelo qual o logos
da coisa se mostra de forma apodíctica[3].
A teoria ideológica,
entretanto, possui como fundamento um interesse, uma vontade. Não se cuida de
um saber necessário, mas de um conhecimento que se impõe sobre a realidade,
para fazê-la cumprir um desígnio que lhe é estranho. Na teoria ideológica, a episteme
se subordina ao interesse do ideólogo. A coisa real é estudada dentro de um
cosmos fabricado pelo cientista. Não há verdadeira ciência; há apenas a
ciência que interessa à causa, aos interesses que são defendidos. Obviamente,
há elementos de verdade na teoria ideológica, visto que nenhum ser humano
defende algo que seja totalmente irrazoável, contudo, essas verdades são
escravas da causa que move a ideologia. O reinado aí, não é da verdade, mas dos
interesses ideológicos.
Em segundo lugar, nem todo
interesse é ideologizado. Com isso quero dizer que um interesse para ser
ideológico, precisa ser teoricamente justificado ao ponto de compor uma
cosmovisão, ou seja, ele deve fundamentar um estilo de vida.
Convém ainda esboçar a noção
de “visão ideologizada”. Esta consiste em um modo de ver o mundo que é próprio
de um ideólogo. Sua principal característica é a percepção neurótica de que por
trás de tudo, há sempre um interesse de uma elite dominante ou de um grupo que
aspira à dominação. A pessoa que desenvolveu essa visão, julga encontrar os
“interesses” da classe ou grupo que ela combate em quaisquer detalhes,
acontecimentos, notícias, etc. Todos os acontecimentos passam a ser
interpretados em termos dessa luta entre classes ou grupos. Obviamente, a visão
ideologizada é parcial, sendo por isso denominada por alguns como um delírio de
interpretação da realidade[4].
Notemos por fim, os elementos
que compõem uma ideologia: a) em primeiro lugar um interesse ideologizado; b)
uma causa e um projeto de ação, os quais derivam diretamente do interesse
visado; c) uma teoria ideológica que justifique o interesse, a causa e o
projeto de ação; d) uma plêiade de adeptos, que se dividem em dois grupos: o
primeiro constitui a elite intelectual, os formadores da teoria e cosmovisão
ideológicas. O segundo é constituído dos que vivem sob a égide dos mandamentos
da ideologia, os quais podem ser meros praticantes ou militantes.
Munidos destas informações
passemos a análise da situação político-ideológica em nosso Brasil. Vejamos
inicialmente quais são os grupos ideológicos em voga. Depois veremos, em cada
um deles, aqueles elementos que formam as ideologias como tais.
IV –
Grupos ideológicos no Brasil
Temos de um lado do espectro
a chamada esquerda política. Esta congrega a simpatia e apoio de grande parte
da população (movimentos sociais, sindicatos, comunidades eclesiásticas, etc.);
uma variedade de partidos políticos alinhados à linha ideológica marxista,
comunista e socialista (PT, PC do B, Psol, PSDB, etc.); grupos com
características de guerrilha como o MST; facções criminosas, a exemplo do
Comando Vermelho; detém ainda a hegemonia na grande mídia televisiva, nas
universidades e escolas, e nos altos escalões das instituições políticas.
Do outro lado, temos a
chamada direita política. Esta também congrega o apoio e simpatia de grande
parte da população (em sua maioria denominações evangélicas e setores da igreja
católica, algumas associações civis recentes, etc.); uma variedade de partidos
políticos alinhados ao liberalismo político-econômico e ao conservadorismo nos
costumes (PL, NOVO, PRTB, Republicanos, etc.); grupos militares e paramilitares;
detém a hegemonia em três setores estratégicos: redes sociais, na classe média
e na comunidade evangélica.
Há, ademais, outro grupo
ideológico, praticamente ignorado no Brasil, ressalte-se que mais por suas
características, do que por uma inépcia intelectual do povo. Trata-se do
centrão. O centrão constitui uma ideologia parasitária, cuja característica
principal é servir-se dos antagonismos sociais, polarizações, interesses
opostos, etc., para sobreviver. Esta característica peculiar, lhe permite
ocultar-se, e por estar no centro dos contendores, posar de prudente, mediador
de conflitos, equilibrado, etc., enquanto retira da briga tudo o que é útil
para a sua vida de luxo. Voltaremos a falar dele mais tarde. Por ora, cumpre
frisar que ele também congrega grande parte da população. Sim, grande parte da
população apoia ou concorda com a ideia de que na política o que menos importa
são os ideais “puros”, e o que vale mesmo é se beneficiar e se dar bem. Tal é o
núcleo da ideologia do centrão, uma ideologia tipicamente brasileira. Mas
cuidado, o centrão, por ser um parasita, não deve ser buscado em siglas
partidárias, mas sim em atitudes dos políticos. Desde esse ponto de vista se vê
como grande parte dos políticos busca majoritariamente os seus interesses e a sobrevivência
na política, mesmo quando buscam interesses alheios. Daí que o centrão
constitua a essência da prostituição política brasileira, e a definição mesmo
da politicagem no Brasil. Com efeito, quando, neste país, se fala em “sistema”,
de outra coisa não se fala, senão desta ideologia centrista que vive da seiva
que corre nas demais ideologias, sendo uma espécie de corrupção da corrupção,
visto que toda ideologia já é uma corrupção da verdade. Desse modo, o centrão,
embora conte com o apoio ou concordância de grande parte da massa, se constitui
em sua quase totalidade, no próprio estamento político.
Creio que haja outras
ideologias vigentes no Brasil, mas estas três são as que interessam ao presente
estudo, visto que integram o cerne dos debates acerca da polarização. Passemos
a descrever os elementos ideológicos de cada uma.
V –
Elementos ideológicos da Esquerda
Principiemos com a ideologia
comunossocialista ou esquerdista.
A esquerda, nome que aqui
designa todo um complexo de ideias e doutrinas unidas por um interesse
prevalente na noção de sociedade igualitária, não se ideologizou, mas nasceu
efetivamente ideológica. É, de fato, a primeira ideologia no sentido negativo
em que o termo foi utilizado no marxismo. Com efeito, os textos de Karl Marx
constituem, sobretudo uma apreciação do mundo, que tem como viga mestra, os
interesses do proletariado e a denúncia da burguesia como o mal a ser
extirpado. A construção teórica, embora aspire ao caráter científico, possui
como ponto de articulação a reunião de elementos que favorecem a causa
proletária. O objetivo de sua teoria não é a descoberta da verdade acerca das
coisas, mas a sua transformação a partir da percepção de uma opressão que a
classe trabalhadora sofre. O ponto subjetivo desde o qual a teoria se constrói,
portanto, não é cientificamente válido, porque não é sinceramente científico.
Efetivamente, é a visão ideologizada que guia a formulação teórica esquerdista:
uma vez definido o inimigo, tudo passa a ser visto em termos de um dualismo,
onde a realidade é reduzida a um confronto entre proletários e burgueses.
Quanto aos interesses
ideologizados e por alcançar, temos declaradamente os seguintes: a) sociedade
igualitária sem classes e/ou Estado (utopia); b) ausência de religiões ou de
qualquer sistema que implique em hierarquia ou dominação; c) sistema de justiça
baseado no lema “Cada um segundo suas capacidades; a cada um segundo suas
necessidades”, localizado no topo do processo revolucionário; d) sistema
econômico baseado na propriedade coletiva (livre associação) dos bens/meios de
produção (ausência de propriedades privadas).
Desses interesses, surge a
causa comunossocialista, o seu projeto e as suas formas de ação. Façamos a sua
lista mínima: a) estatização crescente da economia, juntamente com taxação
progressiva, como forma de minar gradativamente a propriedade privada,
passando-a ao domínio do Estado; b) no bojo da linha marxista-leninista, temos
a instauração da ditadura do proletariado, e a derrubada violenta da classe
burguesa (formação de guerrilhas, facções, etc.); c) no seio da linha
marxista-gramsciana, a destruição inicial dos valores e princípios que formam a
chamada superestrutura ideológica, a qual “justifica” a base econômica burguesa
(infraestrutura). Tal estratégia deu origem a guerra cultural e ao marxismo
cultural. Cumpre frisar, no entanto, que no modelo chinês, adotou-se o
capitalismo no plano econômico e um controle ideológico rígido. Tal postura não
significa outra coisa, senão a negação e a perfeita inversão da própria teoria
comunista, uma ironia comicamente atroz; d) fomento de pautas identitárias e
promoção do lumpemproletariado (população LGBT, criminosos, marginais,
moradores de rua, etc.); e) desconstrução da linguagem e ressignificação de
termos e palavras (novilíngua); f) aparelhamento e ocupação de instituições
sociais (universidades, rádios, mídia tradicional, parlamento, partidos
políticos, igrejas, comunidades, associações, grêmios estudantis, sindicatos,
etc.).
No plano da teorização
ideológica, a causa comunista assenta-se em três pilares, amplamente
difundidos: materialismo histórico e dialético, luta de classes e ateísmo.
Subjaz os seguintes pressupostos teóricos: naturalismo, evolucionismo e
darwinismo social. Conectando todos estes pontos temos o relativismo moral, e a
crença de que a consciência/espírito humano é um produto do funcionamento do
cérebro, e as ideias, o resultado das interações e relações materiais.
No que tange aos adeptos, a
ideologia esquerdista se mostra a mais amadurecida. Possui uma elite
intelectual, com farta bibliografia e tradição. Possui, ademais, um número
incontável de sectários que consomem esses materiais e vivem sob a égide dessa
orientação intelectual, e possui ainda a chamada “militância”, constituída de
ideólogos profissionais. Tal militância, costuma aparecer como sinal de
amadurecimento e recrudescimento da ideologia, e tem como tarefa principal a
luta ostensiva contra os inimigos e a manutenção do caráter orgânico do grupo.
Vejamos agora a ideologia
direitista ou conservadora.
VI –
Elementos ideológicos da Direita
Esta ideologia é
relativamente recente. Surge a partir da união do conservadorismo político com
o conservadorismo nos costumes. Ela se molda desde o momento em que ambos os
grupos percebem a esquerda como inimiga, e se articulam em torno de interesses
comuns. Essa articulação de interesses só foi possível com o progresso do
marxismo cultural promovido pelo gramcismo. No Brasil, a sua gestação fora
longa, em especial no submundo periférico das redes sociais, mas sua primeira
erupção pública ocorre com as manifestações em junho de 2013: ali ela aparece
indistinta, indecifrável, envolta em fumaças de descontentamento, sem um rumo
certo ou liderança que a representasse, ela aparece, em suma, como pura força.
Viria a ganhar um líder mais tarde, em 2018, na figura de Jair Bolsonaro. Nesse
ponto, já vai adquirindo alguma consistência e organicidade, mas ainda lhe
faltará arquitetos que lhe definam a exata compleição. A imagem paralela da
direita americana lhe fornecerá alguns padrões, contudo, não seria ainda o suficiente
para lhe aquilatar as faces.
Passemos aos seus interesses.
Estes, diferentes dos interesses esquerdistas, já existem, e se buscam pela
conservação. Vejamos: a) na economia, princípios liberais, técnicos, com
liberdade econômica (economia de mercado, ou seja, capitalismo); b) na
política, a defesa do Estado Mínimo ou suficiente, com funcionalidade afeita à
segurança pública e defesa dos interesses nacionais e proteção dos direitos
individuais; c) manutenção da propriedade privada e da internet sem censura ou
controle estatal; d) no plano da moral e costumes, defesa da vida, da família,
e do casamento; e) defesa dos valores judaico-cristãos, e dos princípios da
democracia liberal e técnica.
Com relação a causa, projetos
e meios para alcançá-los, a recém-ideologizada direita, adotou os seguintes: a)
aumento da representatividade política; b) promoção de uma educação
conservadora, por meio da criação de sistemas alternativos a educação pública
oficial (homeschooling, canais como o Brasil Paralelo, canais de influencers
nas redes sociais, fortalecimento de escolas confessionais, militares, etc.);
c) formação de uma elite intelectual de orientação liberal e conservadora; d)
formação de uma militância profissional.
Conforme exposto, a direita
não nasceu ideológica, mas se ideologizou a partir do momento em que, tomando
consciência de seus interesses, identificou a esquerda como inimigo a ser
combatido. Desde esse momento, munida da visão ideológica, ressignificou as
teorias científicas anteriores, para fazê-las caber dentro da guerra cultural. A
ideologia direitista ainda não possui uma teoria ideológica bem definida, mas
os seus traços gerais, já podem ser percebidos. Com efeito, se trata de uma
mescla de teoria econômica capitalista clássica, doutrina do Estado Mínimo e
valores judaico-cristãos. Nessa visão coexistem dogmas que agora tentam se
conciliar, a exemplo da lógica de mercado capitalista no liberalismo, com a
ortodoxia cristã. Com efeito, a síntese dessas tensões internas costuma sair
pelas válvulas do pragmatismo ou utilitarismo.
Por fim, quanto a uma elite
intelectual direitista, entendemos que apesar de recente, ela conta com um
número considerável de formadores de opinião, que militam especialmente pelas
redes sociais. Merece destaque a figura de Olavo de Carvalho, que durante
décadas foi uma das poucas vozes contra a esquerda no Brasil. No lado do
denominacionalismo evangélico, sempre houve autores que combateram, ao menos no
plano teórico, a visão esquerdista, não obstante, Carvalho revelou as
estruturas reais do comunismo. Foi, em certo sentido, o responsável por
encarnar o combate e formar o caráter ideológico da direita. Sem dúvida, foi um
dos responsáveis por unir católicos, políticos liberais, militares e
evangélicos, grupos tão distintos, a partir da articulação de um inimigo comum
e de interesses comuns. Quanto aos adeptos comuns e militantes, estes se
encontram em todos os estamentos sociais, com destaque para as igrejas
evangélicas e classe média.
Vejamos, por fim, o
enigmático centrão.
VII –
Elementos ideológicos do Centrão
O centrão tem origem
brasileira. Diferente das outras ideologias que se formam desde influências
estrangeiras, o centrão, pode-se dizer: é nossa criação, aliás, uma das
expressões mais claras de nosso espírito. É a imagem exata de nossa praxis
política, a forma pela qual aprendemos a governar, constitui-se, por
excelência, a ideologia do estamento político. A sua força reside em seu
caráter parasitário, visto que é de seu jaez, nutrir-se dos conflitos e tirar
vantagens dos antagonismos. No Brasil, ele define a governabilidade do gestor.
Sempre foi uma ideologia, mas apenas agora, se teve o momento em que sua face
ideológica se mostrou claramente pela repetição ostensiva de seu modus
operandi.
Façamos a lista de seus
interesses ideologizados: a) primeiramente, a sobrevivência estratégica da
política, pela constituição de um “jogo político”, a politicagem, comumente
denominada na literatura de “fisiologismo político”; b) visa ainda, constituir-se
como instância instauradora da ordem política, isto é, como “sistema” que
define quem é candidato, quem se elege, quem figura e desponta no jogo, em
suma, como a instância que instaura os termos do manual de sobrevivência na
política; c) busca o seu reconhecimento como instância mediadora e negociadora
dos conflitos e antagonismos políticos, para por meio disso, impor-se como
indispensável ao triunfo de qualquer candidato ou de qualquer causa; d) por
fim, aspira a manutenção de seu poder político e legitimador.
Desses claros interesses
decorre a sua causa, os seus projetos e os seus meios de ação. Vejamos: a) o
dito centrão atua por meio de um posicionamento estratégico, o qual parte de
sua não vinculação a nenhuma teoria ou ideal específico. Esse distanciamento
ideológico, é parte vital de sua atuação, pois só assim, ele pode concentrar-se
em sua ideologia própria, que é o seu próprio interesse; b) atua ainda por meio
da troca de favores (famoso toma lá, dá cá), por meio dos quais,
consegue exercer pressão sobre os diferentes grupos; c) ele define efetivamente
a governabilidade, ainda que não esteja nos cargos de mando, por meio da sua
atuação. Um bom exemplo disso, é a compra de apoio parlamentar, o mensalão, as
emendas parlamentares, etc.; d) por fim, o centrão impõe-se como cultura
política, no sentido, de que tanto os que já são políticos como os que buscam
nela ingressar, tem de curvar-se ao seu fisiologismo.
Passemos a analisar os seus
fundamentos teóricos. Ao contrário do que parece à primeira vista, o centrão
não atua sem uma teoria que lhe oriente a ação. Três filosofias, ao menos,
embasam a atuação centrista, a primeira é o utilitarismo, a segunda é o
pragmatismo, e a terceira é a ética maquiavélica. Do utilitarismo, o centrão e
aqueles que simpatizam dele, colheram a ideia de que o útil somente, deve ser
buscado. Útil é o que traz algum benefício concreto. Eis aí o ponto de conexão
com o pragmatismo. O centrão busca o que é útil e o que funciona. Tudo isso é
teórico e fruto de profundas reflexões de filósofos com John Locke, Stuart
Mill, William James, entre outros. A estas filosofias, no entanto, soma-se a
ética maquiavélica; esta pretende um senhorio das circunstâncias, positivas ou
negativas que surgem, de modo a garantir a ascensão ao poder político e a
permanência e sobrevivência nele. O senso comum resumiu a ética maquiavélica no
axioma “os fins justificam os meios”. De fato, a ideologia do centrão promoveu
uma instrumentalização dessas filosofias para que elas constituíssem a
justificativa teórica de sua atuação parasitária. Curiosamente, o ditado “interesses
não tem ideologias” é um postulado básico da ideologia centrista, pois por meio
ele, o centrão promove a sua imagem de um atuar pragmático, útil e sem apelo a
purismos teóricos. Com efeito, um grande número de pessoas, na tentativa de
fugirem a polarização direita-esquerda, terminam por assumir, como por uma
trágica e macabra ironia, os postulados básicos da ideologia maquiavélica do
centrão.
Quanto a presença de adeptos,
o centrão possui grande número, tanto no corpo do estamento político, quanto
fora dele. Há efetivamente cidadãos comuns que votam em quem lhe ajuda, e
buscam beneficiar-se da política segundo a mesma lógica da ideologia centrista.
De igual modo, são conhecidos de toda a população brasileira, aqueles figurões
da política, que são a encarnação e os mentores da ideologia fisiologista.
Ora, as demais ideologias não
são naturalmente políticas, no entanto, tiveram de politizar-se para fazer
avançar as suas pautas. O centrão, contudo, é a expressão da política nacional,
e quem entra em seu território, tem de seguir o seu jogo. Ou se governa com
ele, ou ele tira do governo. É desse modo que a ideologia centrista exerce o
seu fascínio e a sua força, isto é, pelo seu excesso de corrupção, que corrompe
até aquilo que já é corrompido. Esse modo de atuação, permitiu ao centrão
estabelecer a política como um espaço próprio, onde reina a corrupção: na
política, se admite somente os que querem corromper-se e beneficiar-se dela;
fora dela, no entanto, os anjos podem existir, e se quiserem permanecer puros
devem conservar-se bem longe. Como toda ideologia, o centrão possui os seus
militantes, mas diferente das outras, destes não se exige outras virtudes,
senão aquelas de mudarem tantas vezes quantas forem necessárias para se dar bem
e se perpetuarem no poder.
Em síntese, a análise dos
elementos das ideologias, permitiu concluir que os esquerdistas buscam os seus
interesses pela revolução, os direitistas, pela sua conservação, e os
centristas pela atuação parasitária. Mais: os interesses da esquerda e da
direita, incluem e transcendem os seus militantes, integrando-os em um projeto
de mundo e sociedade, mas os do centrão, são corporativistas e particulares,
procedem, portanto ao inverso.
VIII – A
polarização política brasileira: origem e características
A origem do fenômeno
denominado “polarização política”, ao menos no Brasil, pode ser encontrada no
exato momento em que a direita, entendida como um bloco constituído pela união
do conservadorismo político e o conservadorismo nos costumes, se ideologizou,
isto é, quando os seus interesses comuns foram ameaçados ao ponto de se estabelecerem
como um eixo teórico articulador de uma cosmovisão conservadora do mundo.
Esta ideologização, não
ocorreu em um instante, mas foi progressivamente instigada, sobretudo, pelo
despertar das consciências, para elevar ao primeiro plano a guerra cultural e
identificar na esquerda o inimigo a ser derrotado. É óbvio que a esquerda, como
tal ideológica, sempre viu nesse bloco conservador, até então sem nenhuma
organicidade, um todo coeso e articulado a ser combatido. Cedo ou tarde,
portanto, um polo organizado e contrário a existência do esquerdismo, haveria
de se formar como reação. Quando ele toma forma e surge, o fenômeno da
polarização é a consequência imediata. A polarização, portanto, se dá entre
esquerda e direita; porém, aqui no Brasil, possuímos o centrão como agente que administra,
gere e tira proveito dessa tensão.
A
característica central e distintiva dessa polarização é a incapacidade de se
articular um diálogo entre os polos. Tal fato resulta, sobretudo, da ausência
de um princípio superior no âmbito do qual algum ponto de convergência entre os
polos possa ser encontrado. Com efeito, os polos em questão se veem como mutuamente
excludentes, e não toleram a existência um do outro. A ausência de diálogo é
sintoma da ausência de mútuo entendimento; e a ausência de entendimento,
significa que reina a ignorância. Ora, o reinado da ignorância demonstra que a
crise que se instaurou entre os polos, não dará à luz a nenhum conhecimento,
mas é pura violência e guerra. Daí,
outra coisa não resultará senão destruição e mortes.
IX – Polarização
política e as Ideologias
Consideremos como cada
ideologia atua e contribui com a polarização.
A esquerda, pode-se dizer, é a
ideologia na sua expressão mais pura, visto que no seio de seu desenvolvimento,
ela nada respeita, a não ser a sua própria causa. O sentimento ideológico, como
vimos, é o que faz despertar a consciência ideológica. Desse modo, a esquerda é
a grande força geradora das polarizações, sobretudo no Brasil. Eis a sua
contribuição: ela despertou o direitismo como um bloco inimigo ao tratá-lo
dessa forma. A sua hostilidade foi o combustível que alimentou a formação da consciência
ideológica da direita. Autores, como Olavo de Carvalho, apenas deram forma e
expressão a essa consciência.
Quanto à direita, temos que
ela vestiu a carapuça de “inimigo da esquerda” e sucumbiu a visão ideologizada
de mundo, abraçando a mesma parcialidade típica daquela ideologia. Desde então,
o direitismo apartou-se da sociedade como se lhe representasse os interesses, passando
a combater sua arqui-inimiga com idêntico provincianismo.
Pior, no entanto, foi ver no
Brasil, o cristianismo ceder perante a ideologização da sociedade. Com efeito, a
Igreja de Cristo, pela sua própria posição como “coluna e firmeza da verdade”,
constitui o ponto desde o qual as ideologias podem ser adequadamente esquadrinhadas
e julgadas. Porém, este não é o local para tratarmos desta questão. Em outro
lugar escrevi algo a respeito, para onde remeto o leitor[5].
Quanto ao centrão, dada a sua
natureza parasitária, percebe-se que ele não deseja a morte ou destruição de nenhum
dos combatentes. Quer dizer: ele deseja a guerra, mas não a vitória completa de
nenhum dos lados. Com efeito, ele faz concessões aos dois lados, contribuindo
com o avanço parcial deles, sem que, no entanto, isso configure a total
sobreposição de um sobre o outro. Ao mesmo tempo, o centrão fisiológico,
aproveita esse seu jogo para posar de prudente, equilibrado, sensato ou isento
de interesses. De fato, muitos, cuidando não serem de esquerda ou de direita,
abraçam o centrão e fazem coro a sua atuação, defendendo inclusive o seu modus
operandi como a única forma de se fazer política.
X –
Conclusão: superando a polarização
A única maneira de vencer a
polarização é recolocar-se acima dela. Isto significa rejeitar a apreensão
ideológica do mundo e, por conseguinte, a visão ideologizada das coisas.
Somente por essa via, a consciência deixará de se mover pelos interesses
ideológicos e poderá se deixar guiar pela verdade mesma.
[1]
Escritor, advogado e servo de Cristo.
[2]
Eis
os silogismos básicos que guiaram a sabedoria do povo na enunciação desse
princípio: a) toda teoria é algo distinto da prática; b) a ideologia é sempre
uma teoria; c) logo, a ideologia é teórica e não prática. Ao lado desse
silogismo, construiu-se outro: a) toda teoria diz respeito ao universal; b) o
interesse é sempre algo particular; c) logo, o interesse nunca diz respeito ao
universal. Da fusão desses dois silogismos, resulta o seguinte: a) toda
ideologia é teórica e sempre universal; b) o interesse é sempre particular e
nunca universal; c) logo, o interesse não constitui ou possui uma ideologia.
[3]
É importante trazer à tona a lição de Xavier Zubiri no clássico “Cinco
Lecciones de Filosofia”: “A demonstração não é demonstração por ser
silogismo, mas, ao contrário, o silogismo é demonstração porque a conexão dos lógoi
na coisa mesma, nos faz ver nela a estrutura de seu ser necessário”.
[4]
De acordo com o Dr. Paul
Sérieux “Enquanto em geral as psicoses demenciais sistematizadas repousam sobre
perturbações sensoriais predominantes e quase permanentes, todos os casos que
aqui reunimos são, quase que exclusivamente, baseados em interpretações
delirantes; as alucinações, sempre episódicas quando existem, não desempenham
neles papel quase nenhum… A ‘interpretação delirante’ é um raciocínio falso que
tem por ponto de partida uma sensação real, um fato exato, o qual, em virtude
de associações de idéias ligadas às tendências, à afetividade, assume, com a
ajuda de induções e deduções erradas, uma significação pessoal para o doente… A
interpretação delirante distingue-se da alucinação e da ilusão, que são
perturbações sensoriais. Difere também da idéia delirante, concepção
imaginária, inventada ponto por ponto, não deduzida de um fato observado”.
Extraído do artigo A inversão revolucionária em ação, disponível em:
https://olavodecarvalho.org/a-inversao-revolucionaria-em-acao/.
[5] Refiro-me ao artigo “O atual cenário político e as escolhas do cristão”, disponível em: https://natanrodriguesadv.blogspot.com/2021/10/o-atual-cenario-politico-e-as-escolhas.html
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