sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Ordem mundana e Ordem da Criação: a vocação dos justos

 Por Natan Costa Rodrigues











A imagem do mundo está simbolizada na figura da cidade, a construção humana por excelência. A pólis não é somente um lugar onde os seres humanos habitam, mas o lugar, cujas relações de convivência são por eles constituídas. Ela é um mundo, no sentido de que o indivíduo se integra dentro de seu simbolismo e relações, vivendo integralmente por eles.

As primeiras cidades foram edificadas pela geração impiedosa de Caim: ela simboliza a recusa à ordem natural da Criação e a instituição de uma ordem artificial. A geração dos justos e sábios, por seu turno, encontram a sua imagem na figura do peregrino errante; na figura dos fugitivos que vagueiam pelas cavernas e desertos.

A jornada de Salvação e sabedoria é ilustrada na figura filosófica e teológica do Êxodo da caverna da ignorância e do Egito mundano, respectivamente. Ora, a aquisição da sabedoria passa necessariamente pelo abandono da ordem mundana vertida teologicamente na cidade.

Deus disse a Abrão sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, e vai para o lugar que eu te mostrarei. Este chamado simboliza a condescendência divina; a sua providência, pela qual Ele convida o homem a deixar o mundo e sua teia de relações e o direciona a uma nova vida, onde o seu universo mental, espiritual e legal é substituído pela ordem da Criação, isto é, pelas leis e regulamentos divinos.

O deserto é o cenário dessa transformação. Ele simboliza a força máxima das potências naturais e espirituais que oprimem o homem. Nele, o indivíduo está “Nu”, pois no deserto a civilização não se desenvolve; ele é sempre um lugar de passagem e de peregrinação. Nesse local, a sabedoria pode surgir pelo autoconhecimento que ele promove, visto que, no ermo, o indivíduo descobre o quanto da ordem do mundo continua impregnado em seu ser. Igualmente, somente na solidão do ermo, pode o espírito ser purificado, pela sua religação com o Ser. A verdadeira religião surge no deserto, isto é, na ausência e no descarte da ordem mundana.

A epopeia gnoseológica e moral do indivíduo subtende, ainda, a substituição e superação da ordem temporal e espacial da cidade. Nesta, os homens vivem em função de suas próprias criações e do tempo cronológico, construído em vista de suas próprias necessidades. No deserto, entretanto, o tempo humano não tem importância, pois o labor é improdutivo e, em alguns casos, impraticável. Ele tem de sujeitar-se às potências maiores do que a natureza, pois no deserto, a natureza reina e não é sujeita pelo homem. Sua saída é o caminho da transcendência: o deserto só é superado verticalmente, pelo encontro com Deus, o Senhor dos desertos.

A descoberta do Criador e da sua providência, também é a chave para a superação da cidade dos homens. Ora, a cidade dos homens é o verdadeiro deserto espiritual, pois nele reina o vazio do Espírito e a vastidão das obras humanas, que encantam, pervertem e suprimem a necessidade de transcendência.

As necessidades físicas que o deserto revela, são apenas figuras das necessidades espirituais que o homem possui. No deserto, por meio mazelas físicas, as espirituais podem finalmente emergir ao patamar da consciência humana. Deus satisfaz as necessidades primárias e vitais, levando o ser humano a percebê-lo como Deus.

O homem aprende a viver segundo a providência temporal e espacial da divindade. Desde esse ponto de vista, a ordem intramundana, lhe parece o corolário da vaidade, pois assentadas nos elementos que se dissipam pela sua intrínseca efemeridade. 

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