quinta-feira, 23 de maio de 2024

A salvação de Salomão: entre o automatismo verbal e a experiência da verdade

 Por Natan Costa Rodrigues


Salomão, filho do rei Davi, tornou-se o terceiro rei da nação israelita. Seu governo, marcado por uma opulência material, possuiu ainda, como destaque, um tempo de paz e alianças com diversos povos e nações vizinhas.

Salomão é conhecido e reconhecido, sobretudo, pela sua sabedoria inigualável nos tempos do Antigo Testamento. Segundo a Escritura não havia ninguém que o pudesse rivalizar neste quesito, nem antes e nem depois dele. É considerado um filósofo, cuja reflexão ainda não tinha sido influenciada pelo estilo grego de pensamento.

Escreveu, ademais, conforme se acredita, três livros inspirados por Deus: Provérbios, um conjunto de ditos e axiomas; Eclesiastes[1], um tratado contendo uma investigação acerca do que é útil de se fazer sob o sol, e Cântico dos Cânticos, um hino que celebra a união conjugal.

Não obstante o exposto, este breve texto visa à análise de uma questão particularmente tormentosa acerca do sábio rei: a salvação de sua alma. É que, em paralelo a esta lista de virtudes do monarca, se coloca uma outra de terríveis vícios: Salomão teve cerca de setecentas princesas e trezentas concubinas; praticou a idolatria, chegando ao cúmulo de cultuar o deus Moloque, cujo rito, consistia em parte, num sacrifício de crianças; ele supostamente teria escrito um conjunto de obras ocultistas, nas quais ensinava a invocação de demônios e a manipulação de forças ocultas.

É certo que a salvação de uma única alma é questão afeta, em última instância, aos domínios do Todo-poderoso, e a minha intenção não é falar em nome dEle, mas sim tratar do problema posto, a partir de certos indícios contidos no texto sagrado. Desse modo, para enfrentar adequadamente tão agudo problema, convém notar alguns pontos importantes:

1. Em primeiro lugar, a compreensão de uma verdade só pode nascer da experiência, ou seja, a certeza da verdade surge da confrontação de um juízo com a realidade, de forma que ninguém pode confirmar que um dito seja verdadeiro sem o comparar com algo de concreto que lhe refira, afinal, verdade é a concordância de um juízo emitido com o real.

2. Em segundo lugar, a doutrina da inspiração plenária das Escrituras, ensina que os seres humanos, inspirados por Deus, não foram usados como meras máquinas. O Espírito Santo não os habilitou a somente dizer verdades sem que eles as compreendessem e vivenciassem o sentido; essa doutrina igualmente ensina que a inspiração divina não anulou a personalidade dos autores sacros.

3.  Em terceiro lugar, um equívoco muito comum, quanto à sabedoria que Deus concedeu a Salomão, consiste na crença de que ela lhe chegou pronta e acabada, como se Deus a concedesse por meio um download direto ao cérebro do rei. Nada mais ingênuo. Não é assim que Deus nos ensina a sermos sábios; ao contrário, adquirimos a sabedoria do alto, precisamente em meio as duras lutas e tribulações do dia a dia[2].

4. Ora, geralmente as pessoas que defendem que Salomão não foi salvo, advogam, mesmo sem conscientemente perceberem, uma espécie de separação brutal entre as verdades que ele professou e a vida que ele levou, como se Deus tivesse inspirado Salomão a falar verdades, sem que ele as vivesse e experienciasse. Em essência, segundo essa visão, o sábio Salomão não passou de uma marionete, um autômato, uma espécie de máquina capaz de dizer e ensinar profundas verdades sem, contudo, ter nenhuma experiência delas.

5. Esta ideia, no entanto, contradiz o testemunho bíblico acerca do modo como Salomão agia. Ao lermos o livro de Eclesiastes, vemos que tudo o que Salomão registrou surgiu diretamente de sua própria experiência de vida: “Disse eu no meu coração: Ora, vem, eu te provarei com a alegria; portanto, goza o prazer; mas eis que também isso era vaidade” Ec 2:1. Em seguida, Salomão narra como tentou encontrar o sentido da sua vida nas construções, nos prazeres e no vinho etc., e como descobriu que tudo isso era ilusão. Essa conclusão, diga-se de passagem, verdadeira, foi fruto de uma experiência de vida.

6. No entanto, por que aceitar que a experiência de vida de Salomão, serviu apenas para ele pecar e abandonar a Deus, mas não teve a mesma utilidade quando ele nos diz preciosas e maravilhosas verdades espirituais?

7.  Que substância teriam as verdades ditas por Salomão, se não estivessem lastreadas em sua própria experiência espiritual?

8. É possível, entretanto, que verdades sejam ditas apenas com os lábios, sem jamais serem vividas por quem as diz, tal como sucedeu aos fariseus da época de Jesus: diziam coisas verdadeiras da boca para fora, mas possuíam o coração afastado de Deus.

9.  Ora, mas a verdade sendo dita dessa maneira, não é mais do que uma refinada mentira, pois não reflete a realidade de quem a fala, ou seja, há um descompasso entre o que se diz e o que se vive, de sorte que o dito não corresponde à realidade. Esta é a definição de mentira. E a mentira é o puro verbalismo hipócrita. Foi exatamente isto que Satanás fez no deserto ao tentar Jesus: ele citou as verdades bíblicas de forma mentirosa.

10. Nesse sentido, teria Deus inspirado Salomão a somente dizer verdades, sem as ter vivido? Deus teria inspirado Salomão, pelo seu Espírito Santo, a mentir dessa forma, caindo numa hipocrisia, em um verbalismo ineficaz?

11. Tal coisa é simplesmente inconcebível. Eis o que ocorreu: Salomão extraiu lições verdadeiras a partir daquilo que ele viveu e experienciou; as verdades que ele ensina até hoje, surgiram de sua experiência concreta. Ele não foi uma máquina capaz de falar profundas verdades espirituais desconectadas de qualquer experiência no mundo. Prova maior disto é que o seu ensino só pode ser adequadamente compreendido à luz do que ele viveu. Portanto, Deus inspirou Salomão a registrar as verdades que ele descobriu por meio de suas experiências, tanto negativas, quanto positivas.

É importante notar, caso o exposto acima seja realmente verdade, que as conclusões a que o sábio Salomão chegou em Eclesiastes, especialmente em sua seção final, foram frutos de profundas experiências espirituais com Deus. O sábio, após ter gozado pessoalmente de tudo o que o mundo de então tinha a lhe oferecer, concluiu, por experiência própria, que a suma é temer a Deus e guardar os seus mandamentos.

Por óbvio, ele não disse isto para a salvação dos outros e ruína própria, do contrário, onde estaria a sabedoria deste homem? Se Salomão adquiriu verdadeiramente uma sabedoria celestial que, segundo o Apóstolo Thiago, é dada por Deus[3] e desce do alto[4], do Pai das luzes[5], então como pode ter sido ignorante acerca do que é mais básico e elementar: a sua própria salvação? Tal ignorância é incompatível com a verdadeira sabedoria que Deus lhe deu, mesmo porque, a verdadeira sabedoria não é hipócrita[6].

Sendo ele um filósofo, tratou de transfigurar a sua própria experiência em um tratado de sabedoria prática. É isto o que ele faz em Eclesiastes. Ele retomou a sua vida como um grande projeto pessoal de descoberta da verdade essencial sobre a vida. A pergunta que lhe moveu foi[7]: o que é melhor para o homem fazer debaixo do sol? Ele encontrou a resposta investigando-a com o seu próprio viver, de sorte que a sua vida problemática, contraditória e aporética, foi ao mesmo tempo, a tese, a antítese e, por fim, a síntese da questão. Salomão encarnou em vida, o problema e a solução dele.

Portanto, o último registro escrito por Salomão[8] não foi um mero automatismo verbal, ou seja, uma inspiração vazia de substância e experiência, mas a síntese resolutiva de sua própria vida, o ápice da sua carreira sob o sol. Temer a Deus e guardar os seus mandamentos é a suma verdade que ele descobriu a partir da sua trajetória de vida, e que aponta, de forma ineludível, para a salvação de sua alma.

[1] Se acredita que Eclesiastes tenha sido escrito por Salomão no fim de sua vida, embora tal questão também seja objeto de inúmeras discussões. Para todos os efeitos, partiu-se aqui da crença tradicional e ortodoxa de que Salomão é o autor do livro em questão e o escreveu antes de sua morte.

[2] Interessante notar que a sabedoria que Salomão buscou em Deus era eminentemente prática, isto é, uma sabedoria para um viver sábio perante o povo e também para julgá-lo. Veja 2 Cr 1:10-11: “10 Dá-me, pois, agora, sabedoria e conhecimento, para que possa sair e entrar perante este povo; porque quem poderia julgar a este teu tão grande povo? 11 Então, Deus disse a Salomão: Porquanto houve isso no teu coração, e não pediste riquezas, fazenda ou honra, nem a morte dos que te aborrecem, nem tampouco pediste muitos dias de vida, mas pediste para ti sabedoria e conhecimento, para poderes julgar a meu povo, sobre o qual te pus rei, (...)”.

[3] Thiago 1:5.

[4] Thiago 3:17.

[5] Thiago 1:17.

[6] Thiago 3:17.

[7] Ec. 1:3 , 2:3.

[8] Eclesiastes 12:13-14.

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