domingo, 2 de fevereiro de 2025

 Verdade Efetiva e Abstratismo: breves considerações acerca da Educação Brasileira.


Por Natan Costa Rodrigues

Uma das funções superiores mais extasiantes do ser humano é a sua capacidade de abstrair. Diretamente, a abstração consiste em separar mentalmente aquilo que na realidade é indissociável. Podemos citar como exemplo o fato de percebermos o passado e retomá-lo em sede de um discurso. O fato passado já se foi, mas a nossa mente o torna presente como uma abstração.

A mesma função do nosso espírito entra em cena quando procedemos à análise de qualquer matéria. Se vamos analisar o ser humano, o dividiremos em muitas partes: corpo, alma e espírito; dentro do corpo, procuraremos estudar separadamente os órgãos, células, tecidos, nervos, sistemas, etc.; em nossa parte imaterial, estudaremos as funções mentais e os processos cognitivos; da mesma maneira, penetraremos fundo nas emoções distinguido as suas várias espécies e intensidades. Esta minúcia de saber, que procedemos em abstrato, acha-se unida, em concreto, no indivíduo humano.

A capacidade abstrativa, portanto, assemelha-se a uma ferramenta que nos permite analisar os fatos da realidade que desejamos conhecer e entender. Porém, não raras vezes, a nossa capacidade abstrativa nos arma uma verdadeira arapuca. Confiantes que somos em nossas altas habilidades, abraçamos muitos conhecimentos abstratos como se fossem a expressão da realidade que eles analisam, e mesmo como se a substituíssem. Esquecemos uma importante distinção: a verdade lógica ou abstrata difere, em essência, da verdade efetiva ou concreta.

Essa confusão é muito comum, sobretudo, no processo de educação formal, no bojo do qual os alunos são entulhados de fórmulas, conceitos, ideias e números, sem que possuam a menor noção de qual lugar da realidade procederam essas coisas. Ademais, é curioso notar como gostamos de exibir certos dotes intelectuais, recheando os nossos discursos com palavras e conceitos difíceis, o que, muitas vezes, indica apenas um vazio de conteúdo real.

Uma imagem viva, do que estou explicando, pode ser colhida novamente em uma sala de aula. Mas desta vez, vamos ao curso de Música.

Ali observamos dois tipos de alunos: o primeiro possui o chamado ouvido musical. Ele consegue ouvir as notas e acordes e distinguir as melodias, além disso, ele consegue fazer o que é de se esperar em um curso como esse: ele sabe tocar o instrumento musical. Agora vejamos o outro aluno: ele conseguiu decorar todos os acordes, notas e teorias musicais; seria mesmo capaz de explicar como se formam os acordes e modos gregos. Contudo, há um problema que lhe é crucial: ele não consegue tanger os instrumentos musicais; ele não possui musicalidade em si. O seu conhecimento musical, por mais vasto que seja, não se materializa em uma música de verdade.

Suponhamos ainda que aquele aluno, com a música em si, não conseguiu aprender nada de teoria musical, entretanto consegue tocar muito bem. Neste caso, dificilmente alguém discordaria de que é bem melhor tanger o instrumento, ainda que à custa de não poder conhecer a teoria que lhe serve de explanação. É que, ao fim das contas, somente o que é efetivo servirá para alguma coisa no mundo real.

O saber abstrato, portanto, só é interessante quando ligado à ação humana que lhe dá substância.

***

Se isto é verdade, então precisamos examinar com urgência o que se passa em nosso país, sobretudo com a prédica e o ensino de nossos mestres. Nota-se um fato social, que com uma frequência alarmante, incendeia as mentes juvenis com puras abstrações. Estou falando novamente de educação e sala de aula. Só que desta vez, nos níveis superiores de ensino.

Ali observamos como os universitários aprendem teorias, conceitos e ideias que, raramente, são colocadas em face da experiência humana que lhe deram origem. Creio que a situação funciona do seguinte modo: o professor deve repassar o “conteúdo” e o aluno deve aprender e decorar a “matéria”. Não se cogita da necessidade de se viver os conteúdos.

Aliás, — e talvez isto seja o mais grave —, quer me parecer que o termo “conteúdo” e “matéria”, conforme utilizados em sala de aula, nada possuem, nem de conteúdo, e muito menos de matéria. Tornaram-se entidades independentes, puros conceitos, que podem ser transmitidos de forma verbal, organizados em grades, escritos em livros e simplesmente consumidos. Quando muito, serão utilizados para se passar em provas e certames.

A trajetória desses saberes sofreu um colossal deslocamento. Saindo de sua raiz material e terrena, passaram a ter uma utilização meramente retórica e técnica; após isso, chegaram aos píncaros do abstratismo: valem de per si e não guardam nenhuma relação de dependência com a experiência humana.

Vemos esse vexame se impregnar em pregadores cristãos que não vivem o Evangelho; o vemos na plateia de eruditos e ouvintes que avalia somente o discurso pelo discurso, sem fazer o necessário liame com a realidade subjacente; o encontraremos nos inúmeros simpósios, seminários, mesas redondas, onde especialistas, mestres e doutores se empoleiram em tons superiores para ostentar o domínio das últimas tendências e teorias; em geral, não buscam outra coisa senão abastecer os seus currículos, posar para fotos com grandes personalidades e simular uma importância puramente artificial.

Tal situação, escandalosa, no entanto, consiste no modus operandi de grande parte de nossa sociedade, especialmente na atual quadra histórica, quando o ensino superior se tornou, pouco mais que o ensino profissionalizante e, os milhares de trabalhos monográficos, dissertações, artigos, teses, etc., os quais são despejados anualmente no mundo acadêmico, apenas um ritual para alcançar um título e enriquecer a formação acadêmica.

***

Uma vez exposto o problema, convém esboçar alguma medida que possa, ao menos, diminuir-lhe a força e a potência.

Em primeiro lugar, o que parece vital é o retorno à fonte do conhecimento, isto é, à realidade que o explica e lhe dá a validade. Entretanto, essa orientação é obstaculizada por um completo desinteresse. Com efeito, quase ninguém deseja o conhecimento de fato, mas apenas o simulacro de sua posse, o qual é o título, a cátedra, o cargo, etc., e o mais de ganhos financeiros que essas coisas podem dar.

A saída, parece então, reanimar um certo interesse verdadeiro pelo saber. Mas, como injetar nas pessoas algo que no decorrer dos milênios ficou restrito, de uma forma quase constante, a uns poucos indivíduos, quase sempre ridicularizados por essas mesmas pessoas?

Resta apenas isto, que os que tem a sede pelo legítimo saber, não se corrompam e paguem o preço para exercê-lo, influenciando positivamente à sociedade, a igreja, a escola, os alunos e o processo educacional, contagiando com o seu exemplo, e despertando as mentes adormecidas para algo maior e mais profundo: a verdade, seja ela qual for, como experiência efetiva. Tal ofício sempre foi, ao fim e ao cabo, a única fonte de sabedoria concreta para as massas, cujo maior papel consiste em incorporá-la para si mesma, como cultura e civilização.

Nenhum comentário:

Postar um comentário