sexta-feira, 11 de abril de 2025

“Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?” (João 3.10): O essencial que Nicodemos não entendia.







Por Hildson Pires

Nicodemos é apresentado no início do capítulo como fariseu e um dos principais dos judeus — ou seja, um membro da elite religiosa, provavelmente com assento no Sinédrio. Mais adiante, Jesus o chama de “mestre de Israel”, o que indica sua posição de autoridade no ensino da Torá. Ele não era apenas mais um estudioso, mas uma referência entre os intérpretes da Escritura. Os fariseus, grupo ao qual ele pertencia, se orgulhavam de ser discípulos de Moisés, guardiões da Lei, conhecedores das promessas e da vontade de Deus reveladas nas Escrituras.

E, no entanto, Nicodemos — com toda sua formação, prestígio e autoridade — demonstra não compreender o essencial. Diante da afirmação de Jesus: “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3.5), ele reage com confusão. O que para Jesus era evidente, para Nicodemos era estranho. Isso revela que o novo nascimento, embora proclamado por Jesus, está ancorado nas promessas antigas. As palavras que Jesus usa — nascer do alto, da água e do Espírito — não são novidades. São metáforas bíblicas antigas, que ecoam especialmente a mensagem dos profetas, e mais particularmente Ezequiel 36.25–27:

“Aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados de todas as vossas imundícias... Dar-vos-ei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei com que andeis nos meus estatutos...”

As três imagens que Jesus evoca em João 3 — nascer do alto, nascer da água e nascer do Espírito — são espelhos diretos dessa promessa de Deus por meio de Ezequiel:

•Nascer do alto corresponde ao dom do coração novo – uma nova origem, uma disposição espiritual regenerada.

•Nascer da água remete à aspersão purificadora que remove impurezas e requalifica para a comunhão.

•Nascer do Espírito refere-se ao momento em que Deus coloca o seu Espírito dentro do ser humano, capacitando-o a viver segundo sua vontade.

Jesus presume que Nicodemos, sendo mestre em Israel, deveria reconhecer essa linguagem. Mas há algo ainda mais profundo: assim como Jesus não inventa essas metáforas, Ezequiel também não está falando a partir do nada. O profeta não cria uma nova teologia: ele relê a Torá à luz da promessa escatológica de Deus. Ele se apoia nas bases do culto, da pureza ritual e da regeneração já presentes nas leis de Moisés.

Em Êxodo 30.18–21, Deus ordena a Moisés que coloque uma bacia de bronze entre a tenda da congregação e o altar, para que os sacerdotes lavem ali as mãos e os pés antes de se aproximarem da presença divina. Em Levítico 14, vemos o ritual de purificação do leproso, que inclui aspersão com água misturada com sangue e óleo, e lavagem completa do corpo antes da reintegração à comunidade. Números 19 descreve a preparação da “água da separação”, uma mistura de cinzas e água viva usada para aspergir pessoas impuras por contato com mortos. E Deuteronômio 30.6 promete que o próprio Deus circuncidará o coração do povo, para que possam amá-lo e viver. Em todas essas passagens, purificação, transformação e comunhão com Deus são mediadas por elementos físicos — especialmente a água — sempre sob iniciativa divina.

Esses atos ritualísticos são, em si mesmos, tipológicos: não têm poder intrínseco, mas apontam para uma realidade mais profunda, que será plenamente revelada em Cristo. Em Ezequiel, essa realidade começa a tomar forma como promessa escatológica: a purificação não será mais só externa, mas interior; a transformação não será apenas do status social ou ritual, mas do coração; e a presença de Deus não estará mais confinada ao templo, mas dentro das pessoas.

Esse movimento escatológico já estava insinuado desde o princípio. Gênesis 2.5–7 descreve um mundo árido, ainda sem vida, até que um vapor (ou neblina, mas a palavra em Gênesis parece descrever o que aqui no Maranhão chamamos de “olho d’água”, ou seja, uma nascente) sobe da terra e rega o solo. Só então, Deus forma o homem do pó da terra, agora úmida, e sopra em suas narinas o fôlego (espírito) de vida. A sequência não é arbitrária: primeiro, a terra é regada (aspersão); depois, o barro é moldado (formação); por fim, o Espírito é soprado (vivificação). Essa tríade de atos — água, barro, sopro — ecoa com força em João 3.5, onde Jesus afirma: “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus.”

Portanto, a nova criação em Cristo segue o mesmo padrão da criação original: Deus rega, forma e sopra. A regeneração é o ato pelo qual Deus refaz o ser humano, agora não apenas como criatura, mas como filho, cidadão do Reino, habitado pelo Espírito.

Jesus deixa claro que a regeneração é obra exclusiva de Deus. O ser humano não pode ver nem entrar no Reino por si só. A carne, isto é, a natureza humana, não tem acesso às realidades do Reino. Apenas o Espírito de Deus pode gerar um novo nascimento. Como o vento, que sopra onde quer e cuja origem e destino são invisíveis, o Espírito atua soberanamente na regeneração. Não se trata de reforma moral, mas de recriação ontológica.

Essa distinção é marcante em João 3.6: “O que é nascido da carne é carne; o que é nascido do Espírito é espírito.” Ao longo da perícope (Jo 3.1–21), Jesus apresenta as diferenças entre as duas condições:

Quem é nascido da carne:

1. Limitado à compreensão terrena

• Nicodemos, mesmo sendo mestre, não compreende as palavras de Jesus (v.4, v.9).

• A carne está associada ao que é terreno, literal, natural.

2. Incapaz de ver ou entrar no Reino de Deus

• “Se alguém não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus.” (v.3)

• “...não pode entrar no Reino de Deus.” (v.5)

3. Prisioneiro da incredulidade

• “Se, falando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?” (v.12)

• O nascimento carnal não capacita à fé espiritual.

4. Inclinado à rejeição da luz

• “...os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más.” (v.19)

• Há uma inclinação à escuridão moral e espiritual.

5. Sujeito ao juízo

• “Quem não crê já está condenado.” (v.18)

• A carne, por si só, permanece em oposição à revelação.

Por outro lado, quem é nascido do Espírito:

1. Capacitado a ver e entrar no Reino de Deus.

• “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus.” (v.5)

• O nascimento do Espírito habilita para a realidade do Reino.

2. Movido pelo vento do Espírito.

• “O vento sopra onde quer... assim é todo aquele que é nascido do Espírito.” (v.8)

• Imagem de liberdade, imprevisibilidade e ação soberana do Espírito.

3. Acessa as realidades celestiais.

• “Falamos do que sabemos e testificamos do que vimos...” (v.11)

• O nascimento espiritual abre o entendimento à revelação.

4. Capacitado à fé que gera vida eterna.

• “Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (v.16)

• A fé, dom possível pelo Espírito, resulta em vida verdadeira.

5. Pratica a verdade e vem para a luz.

• “Quem pratica a verdade vem para a luz.” (v.21).

• Há uma disposição à transparência, verdade e aliança com a luz.

Os verbos ver e entrar são decisivos. Ver o Reino é discernir a realidade espiritual, reconhecer a presença de Deus, enxergar com os olhos da fé. Entrar no Reino é participar de sua vida, de sua justiça, de sua dinâmica redentora. Ambos os verbos exigem que o ser humano seja regenerado. Sem novo nascimento, a pessoa vive, mas não percebe; se move, mas não pertence; busca, mas não encontra.

A crítica de Jesus a Nicodemos é também um apelo à reflexão da liderança religiosa: como guiar o povo de Deus sem compreender o processo pelo qual alguém se torna verdadeiramente parte do Reino? Como ensinar as Escrituras sem discernir o que elas anunciam desde o princípio? A pergunta — “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?” — continua ecoando para todos os que ensinam, pregam e discipulam em nome de Deus.

A regeneração proclamada por Jesus é o cumprimento das promessas da Torá, reinterpretadas pelos profetas e inauguradas no próprio Cristo. Ver e entrar no Reino não é privilégio de uma elite religiosa ou moral; é dom de Deus, obra do Espírito, resultado da água que purifica, do coração que é renovado e do sopro que dá vida.

É Ele quem asperge, molda e sopra. É Ele quem nos faz nascer de novo.



3 comentários:

  1. Excelente artigo. Que Deus continue a usá-lo para o louvor da sua Glória e para a nossa edificação enquanto leitores deste blog. Um forte abraço.

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