segunda-feira, 30 de junho de 2025

Relação Deus e Homem: fatos, imagens e sentidos - II - Senhor e servo

 



Por Natan Costa Rodrigues

Prosseguindo com a análise proposta, desta feita vamos avaliar a relação que se dá entre o homem, como servo, e Deus como Senhor. A narrativa bíblica expõe que Deus pôs o homem no Jardim do Éden, para nele trabalhar e o guardar[1]. O termo hebraico “âbad” significa “trabalhar”, “cultivar”, “servir”, designando, além da ideia de trabalho, a noção de servir a Deus (Ex. 3:12). É a mesma palavra, que no Latim, significa “cultuar”, donde nos vem os termos “culto” e “cultura”. Por certo que a ideia de trabalho nesse texto não envolve a concepção latina de tripalium, instrumento de tortura formado por três paus, donde nos vêm a atual carga negativa do termo “trabalho”. Desse modo, utilizaremos os termos “serviço”, “trabalho” e “culto” no sentido bíblico.

Portanto, entende-se que a palavra “servo” designa a condição do homem enquanto empregado na obra do Senhor e, simultaneamente, como quem presta culto e adora a Deus. Ora, nesse sentido, o trabalho, em sua etimologia e genética, é tanto um serviço quanto um culto, isto é, por meio dele Deus é cultuado e servido. A relação entre Senhor e servo é uma relação entre Deus e seu adorador, pois todo culto implica em um serviço, e todo serviço, em um certo tipo de culto.

Podemos avaliar a presença desta noção, até mesmo em nossas atividades ditas seculares. De fato, quando trabalhamos em algo que gostamos, sentimos uma espécie de devoção quase religiosa. Não obstante, quando o trabalho se dá por obrigação ou necessidade, notamos a sua não conformidade com a natureza que lhe é própria.

Prosseguindo, essa relação se mostra ainda hierárquica, pois ao servo compete executar uma atividade e ao Senhor, dirigir essa atividade. Ora, é sabido, desde a antiguidade, que aquele que dirige a obra é superior e mais sábio do que aquele que a executa.

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Esclarecidos estes pontos iniciais, vejamos que consequências e mandamentos podemos extrair desta relação?

Em primeiro lugar, as nossas atribuições devem ser provenientes de Deus, visto que Ele nos dirige. Sendo Ele o nosso Senhor, naturalmente é quem determina a atividade que devemos fazer[2]. Em segundo lugar, fomos criados para o serviço e para o culto. Tal fato não abrange somente uma faceta da nossa personalidade, mas todas as áreas de nosso ser. O serviço e o culto consistem em labores de natureza física, emocional e espiritual. É por meio deles que nos realizamos enquanto criaturas de Deus.

Em terceiro lugar, ao exercer qualquer labor ou atividade, devemos fazê-lo, como se fosse ao próprio Deus. Com efeito, é especialmente nesse sentido, que se entende que qualquer serviço é uma espécie de culto. A Bíblia nos ensina que devemos servir aos senhores, segundo a carne, como se estivéssemos servindo a Cristo[3].

Nessa via, observamos que o marido deve amar a esposa como Cristo amou a igreja, dando a sua própria vida por ela[4].  A esposa deve servir ao marido, reverenciando-o, como a igreja reverencia a Cristo[5]. Os irmãos, em geral, devem servir-se mutuamente, demonstrando a mesma presteza que o Senhor Jesus mostrou[6]. Ademais, o nosso Senhor ensinou que quando alimentamos o faminto, vestimos o nu, visitamos os presos, e fazemos toda sorte de beneficência aos outros, é a Ele que estamos fazendo[7].

Com efeito, todo trabalho, se afastado desse aspecto relacionado ao culto, fica esvaziado de seu conteúdo ético, e se torna algo alienante da personalidade. Ao contrário, quando ele é envolvido dentro desse entendimento, isto é, como serviço prestado diretamente a Deus e não meramente a homens, recupera a sua funcionalidade, sendo um instrumento estruturante de nossa plena humanidade: não somente de nosso sucesso financeiro, como tanto se busca atualmente, mas de nosso êxito espiritual e emocional.

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Dito isto, o que se pode aplicar desta relação de Senhor e servo?

Notemos que na direção que o Senhor dá ao seu servo, lhe é exigido obediência. Por isso, o servir também é um obedecer; e no ato de obedecer também é exigido uma confiança, donde se pode afirmar que o servo obedece, porque confia. De fato, quando executamos aquilo que Deus, o Senhor quer e deixamos de fazer o que nós mesmos queremos, demonstramos a confiança que Deus fará algo ainda melhor por nós. Desse modo, a fé se torna indissociável da obediência, e essas duas coisas exigirão a esperança, pois se o que fazemos para Deus é melhor do que aquilo que faríamos por nós mesmos, segue-se que só fazemos isso, porque esperamos receber alguma coisa mais valiosa da parte de Deus.

Em tudo isto fica subtendido a compreensão do Senhor como galardoador e recompensador, como aquele que assalaria o servo com o devido pagamento. Então, na noção de servo e Senhor, consta a ideia de galardão e recompensa pelo trabalho. Pelo mesmo princípio, se há o trabalho do servo, não há o ganho do Senhor? Mas, que pode Deus ganhar conosco, se já possui tudo? De fato, o serviço que Ele nos concedeu é para o engrandecimento de sua glória e para o seu louvor. Não obstante, também é para o nosso próprio bem, por advir do seu caráter dadivoso e amoroso.

Compreendemos que o servir é uma bênção de Deus, por ser nele que o ser humano efetiva as suas potências e atualiza as suas potencialidades inerentes. É certo que Deus dotou o homem com essas capacidades em vista do trabalho que ele desempenharia, do contrário, elas seriam injustificáveis. Daí porque o trabalho é tanto uma necessidade quanto uma oportunidade do ser humano crescer, se desenvolver e por conseguinte se realizar.

O trabalho, seja ele de natureza técnica, política ou puramente intelectual, realiza o ser humano no que tange as suas potências. Quando esse trabalho é inserido no bojo do culto a Deus, ele plenifica o ser humano, visto que não mais trabalha como para si ou para os outros, mas para Deus.

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Por outro lado, o trabalho se torna um elemento alienante desde o momento em que é feito somente para engrandecimento do ser humano ou para seu próprio proveito, e nunca como um serviço prestado ao Senhor.

Em síntese, tais fatos, exigem já uma mudança de nossa forma de pensar, visto que atualmente somos ensinados a odiar os nossos patrões, e a aborrecê-los de todo modo. Com efeito, hoje em dia, trabalhar para um empregador, como se fosse para Deus, é algo praticamente inconcebível. Entretanto, à luz do ensino bíblico, se faz necessário. Obviamente, que essa máxima não exime os patrões de seus deveres junto aos seus empregados, não os tratando com rigor e ameaças, e nem se apropriando dos seus salários[8].

De resto, todas as relações hierárquicas e laborais que se dão entre os indivíduos, devem colher no modelo divino de senhorio, a sua inspiração. Em especial, devem espelhar o modelo de senhorio cristão, o qual se dá pela liderança servil, pelo revestimento mútuo de humildade e amor nas relações entre servos e senhores, líderes e liderados, mestres e discípulos, etc.



[1] Gn 2:15

[2] Com efeito, toda espécie de culto, em certo sentido, implica no cumprimento de uma série de mandamentos e rituais, de sorte que o serviço é indissociável do cultuar.

[3] Ef 6:5

[4] Ef 5:25

[5] Ef 5:22

[6] Gl 6:2; Gl 5:13; 1Pe 5:5; Jo 15:12;

[7] Mt 25: 34-40;

[8] Ef 5:9


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