Prosseguindo com a análise proposta, desta feita vamos avaliar a relação que se dá entre o homem, como servo, e Deus como Senhor. A narrativa bíblica expõe que Deus pôs o homem no Jardim do Éden, para nele trabalhar e o guardar[1]. O termo hebraico “‛âbad” significa “trabalhar”, “cultivar”, “servir”, designando, além da ideia de trabalho, a noção de servir a Deus (Ex. 3:12). É a mesma palavra, que no Latim, significa “cultuar”, donde nos vem os termos “culto” e “cultura”. Por certo que a ideia de trabalho nesse texto não envolve a concepção latina de tripalium, instrumento de tortura formado por três paus, donde nos vêm a atual carga negativa do termo “trabalho”. Desse modo, utilizaremos os termos “serviço”, “trabalho” e “culto” no sentido bíblico.
Portanto, entende-se que a
palavra “servo” designa a condição do homem enquanto empregado na obra do Senhor
e, simultaneamente, como quem presta culto e adora a Deus. Ora, nesse sentido,
o trabalho, em sua etimologia e genética, é tanto um serviço quanto um culto,
isto é, por meio dele Deus é cultuado e servido. A relação entre Senhor e servo
é uma relação entre Deus e seu adorador, pois todo culto implica em um serviço,
e todo serviço, em um certo tipo de culto.
Podemos avaliar a presença
desta noção, até mesmo em nossas atividades ditas seculares. De fato, quando trabalhamos
em algo que gostamos, sentimos uma espécie de devoção quase religiosa. Não
obstante, quando o trabalho se dá por obrigação ou necessidade, notamos a sua
não conformidade com a natureza que lhe é própria.
Prosseguindo, essa relação se
mostra ainda hierárquica, pois ao servo compete executar uma atividade e ao
Senhor, dirigir essa atividade. Ora, é sabido, desde a antiguidade, que aquele
que dirige a obra é superior e mais sábio do que aquele que a executa.
***
Esclarecidos estes pontos
iniciais, vejamos que consequências e mandamentos podemos extrair desta
relação?
Em primeiro lugar, as nossas
atribuições devem ser provenientes de Deus, visto que Ele nos dirige. Sendo Ele
o nosso Senhor, naturalmente é quem determina a atividade que devemos fazer[2]. Em
segundo lugar, fomos criados para o serviço e para o culto. Tal fato não
abrange somente uma faceta da nossa personalidade, mas todas as áreas de nosso
ser. O serviço e o culto consistem em labores de natureza física, emocional e
espiritual. É por meio deles que nos realizamos enquanto criaturas de Deus.
Em terceiro lugar, ao exercer
qualquer labor ou atividade, devemos fazê-lo, como se fosse ao próprio Deus.
Com efeito, é especialmente nesse sentido, que se entende que qualquer serviço é
uma espécie de culto. A Bíblia nos ensina que devemos servir aos senhores,
segundo a carne, como se estivéssemos servindo a Cristo[3].
Nessa via, observamos que o marido
deve amar a esposa como Cristo amou a igreja, dando a sua própria vida por ela[4]. A esposa deve servir ao marido, reverenciando-o,
como a igreja reverencia a Cristo[5]. Os
irmãos, em geral, devem servir-se mutuamente, demonstrando a mesma presteza que
o Senhor Jesus mostrou[6]. Ademais,
o nosso Senhor ensinou que quando alimentamos o faminto, vestimos o nu,
visitamos os presos, e fazemos toda sorte de beneficência aos outros, é a Ele
que estamos fazendo[7].
Com efeito, todo trabalho, se
afastado desse aspecto relacionado ao culto, fica esvaziado de seu conteúdo ético,
e se torna algo alienante da personalidade. Ao contrário, quando ele é
envolvido dentro desse entendimento, isto é, como serviço prestado diretamente
a Deus e não meramente a homens, recupera a sua funcionalidade, sendo um
instrumento estruturante de nossa plena humanidade: não somente de nosso
sucesso financeiro, como tanto se busca atualmente, mas de nosso êxito
espiritual e emocional.
***
Dito isto, o que se pode
aplicar desta relação de Senhor e servo?
Notemos que na direção que o
Senhor dá ao seu servo, lhe é exigido obediência. Por isso, o servir também é
um obedecer; e no ato de obedecer também é exigido uma confiança, donde se pode
afirmar que o servo obedece, porque confia. De fato, quando executamos aquilo
que Deus, o Senhor quer e deixamos de fazer o que nós mesmos queremos, demonstramos
a confiança que Deus fará algo ainda melhor por nós. Desse modo, a fé se torna
indissociável da obediência, e essas duas coisas exigirão a esperança, pois se
o que fazemos para Deus é melhor do que aquilo que faríamos por nós mesmos,
segue-se que só fazemos isso, porque esperamos receber alguma coisa mais
valiosa da parte de Deus.
Em tudo isto fica subtendido a
compreensão do Senhor como galardoador e recompensador, como aquele que
assalaria o servo com o devido pagamento. Então, na noção de servo e Senhor, consta
a ideia de galardão e recompensa pelo trabalho. Pelo mesmo princípio, se há o trabalho
do servo, não há o ganho do Senhor? Mas, que pode Deus ganhar conosco, se já
possui tudo? De fato, o serviço que Ele nos concedeu é para o engrandecimento
de sua glória e para o seu louvor. Não obstante, também é para o nosso próprio
bem, por advir do seu caráter dadivoso e amoroso.
Compreendemos que o servir é
uma bênção de Deus, por ser nele que o ser humano efetiva as suas potências e
atualiza as suas potencialidades inerentes. É certo que Deus dotou o homem com
essas capacidades em vista do trabalho que ele desempenharia, do contrário, elas
seriam injustificáveis. Daí porque o trabalho é tanto uma necessidade quanto
uma oportunidade do ser humano crescer, se desenvolver e por conseguinte se
realizar.
O trabalho, seja ele de
natureza técnica, política ou puramente intelectual, realiza o ser humano no
que tange as suas potências. Quando esse trabalho é inserido no bojo do culto a
Deus, ele plenifica o ser humano, visto que não mais trabalha como para si ou
para os outros, mas para Deus.
***
Por outro lado, o trabalho se
torna um elemento alienante desde o momento em que é feito somente para
engrandecimento do ser humano ou para seu próprio proveito, e nunca como um
serviço prestado ao Senhor.
Em síntese, tais fatos, exigem
já uma mudança de nossa forma de pensar, visto que atualmente somos ensinados a
odiar os nossos patrões, e a aborrecê-los de todo modo. Com efeito, hoje em
dia, trabalhar para um empregador, como se fosse para Deus, é algo praticamente
inconcebível. Entretanto, à luz do ensino bíblico, se faz necessário. Obviamente,
que essa máxima não exime os patrões de seus deveres junto aos seus empregados,
não os tratando com rigor e ameaças, e nem se apropriando dos seus salários[8].
De resto, todas as relações
hierárquicas e laborais que se dão entre os indivíduos, devem colher no modelo
divino de senhorio, a sua inspiração. Em especial, devem espelhar o modelo de
senhorio cristão, o qual se dá pela liderança servil, pelo revestimento mútuo
de humildade e amor nas relações entre servos e senhores, líderes e liderados,
mestres e discípulos, etc.
[1] Gn
2:15
[2] Com efeito,
toda espécie de culto, em certo sentido, implica no cumprimento de uma série de
mandamentos e rituais, de sorte que o serviço é indissociável do cultuar.
[3] Ef
6:5
[4] Ef
5:25
[5] Ef
5:22
[6] Gl
6:2; Gl 5:13; 1Pe 5:5; Jo 15:12;
[7] Mt 25:
34-40;
[8] Ef 5:9
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